BRASIL
Marielle morreu. E agora?
Assassínio de vereadora no Rio de Janeiro reabre a discussão sobre a democracia brasileira
Christiana Martins
Um cordão de mulheres negras de mãos dadas. Um pelotão de acolhimento para o corpo de uma mulher morta com quatro tiros na cabeça. Irmãs em vida, irmãs na morte. O sol de 40 graus queimava-lhes a cabeça. Sempre a cabeça. Ninguém arredou pé, nem quando um grupo começou a gritar “Comunistas, bandidos!”.
No centro das atenções, o caixão de Marielle Franco. Mulher, negra, lésbica, nascida na favela, vereadora do Rio de Janeiro, foi por ela que centenas de pessoas, primeiro, e milhares, depois, se juntaram na quinta-feira na Praça da Cinelândia, coração da cidade, em frente à Câmara Municipal, onde foi velado o corpo da política de 38 anos, morta na noite anterior. Quatro tiros calaram-na. Quatro tiros deram-lhe mais voz.
A escritora Eliana Cruz chegara cedo à Cinelândia. Às 10h já lá estava, apesar do sol, do calor. Negra, 50 anos, sabia que o seu lugar era ali, na corrente de mãos que protegiam o corpo de Marielle. Conhecera a vereadora no salão de cabeleireiro Iporinchê, junção aportuguesada de ipo (lugar), ori (cabeça) e n’se (fazer) em ioruba, língua africana. “Mais do que um centro estético, um espaço de cultura e defesa das mulheres”, criado por Cássia Marinho, madrasta de Eliana e, sobretudo, a mulher que tratava do cabelo de Marielle. As duas foram despedir-se da “referência de cidadania”, conta Eliana ao Expresso, ao telefone.
Balas da Polícia Federal
Na véspera, um carro emparelhara por trás com o veículo em que iam Marielle, o motorista e uma assessora. Estavam no bairro do Estácio, eram 21h30 e, depois de um evento em defesa das mulheres negras — uma reunião na “Casa das Pretas” para debater “Jovens Negras Movendo Estruturas”, na Lapa — Marielle ia para casa, na Tijuca, mas quatro tiros disparados a dois metros interromperam o percurso. O carro tinha os vidros fumados e, estranhamente, Marielle ia no banco de trás, mas os assassinos sabiam o que fazer. O motorista foi uma vítima colateral. A assessora ficou ferida sem gravidade. Uma ambulância foi chamada, mas a morte de Marielle e Anderson foi decretada ali. No chão, nove cápsulas das balas disparadas. Ontem, segundo a TV Globo, já estaria provado que as munições fariam parte de lotes vendidos à Polícia Federal de Brasília em 2006.
Depois do velório-manifestação na Cinelândia, o corpo saiu da autarquia sob aplausos e seguiu para o cemitério do Caju, onde foi enterrado. A morte da vereadora despertou reações internacionais, a ONU condenou o “chocante assassínio” e o Parlamento português aprovou um voto de pesar, exprimindo “a mais veemente condenação pela violência e pelos crimes políticos e de ódio que aumentam de dia para dia no Brasil”.
Há um mês, Marielle fora nomeada relatora da comissão que acompanhará a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, decisão do Presidente Temer, inédita na democracia brasileira, que entrega plenos poderes sobre a segurança do Estado do Rio de Janeiro às forças militares. Foi já nesta função que Marielle denunciou no passado dia 10 a ação de polícias militares na favela de Acari. E, dois dias antes de morrer, escreveu no Twitter : “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da Polícia Militar. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.
Nascida e criada na favela da Maré, Marielle começou a trabalhar aos 11 anos, estudou à noite, engravidou aos 18, entrou para a faculdade, acabou por abandonar os estudos e, já mãe, voltou a estudar e conseguiu uma bolsa integral para uma das mais prestigiadas faculdades cariocas, na privada Pontifícia Universidade Católica. Licenciou-se em Sociologia e fez um mestrado em Gestão Pública, com uma tese sobre segurança, mas uma bala perdida matou uma amiga e empurrou Marielle para a política, onde encontrou Marcelo Freixo, líder do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Não mais parou.
Em 2016 foi eleita vereadora do Rio pela coligação Mudar é Possível, formada pelo PSOL e pelo Partido Comunista Brasileiro. Conseguiu mais de 46 mil votos, tornando-se a quinta candidata mais votada na cidade e a segunda vereadora com mais votos em todo o Brasil. Na Câmara Municipal, presidiu à Comissão de Defesa da Mulher, mas a tarefa mais relevante foi a de relatora da intervenção federal. A dois dias de a decisão de Temer completar um mês, este assassínio reabriu a discussão sobre a pertinência da medida. Nas redes sociais a filha de Marielle, Luyara Santos, de 19 anos, deixou um lamento: “Mataram minha mãe e mais 46 mil eleitores! Nós seremos resistência porque você foi luta!”.
Violência urbana
Uma execução é a principal linha de investigação seguida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Já foram recolhidas as imagens das câmaras de segurança da área do crime. A assessora já prestou depoimento, assim como uma testemunha não identificada.
O Rio atravessa uma grave crise política e económica, com reflexos na segurança pública. Governadores e prefeitos estão presos sob acusação de corrupção e não há verbas para pagar os salários dos funcionários públicos. Em 2017, 134 polícias foram assassinados e 1124 pessoas foram mortas por agentes das forças policiais. Uma violência que atinge em força a população, com 40 mortes violentas por cada 100 mil habitantes.
“As ideias são à prova de bala”, prometeu o deputado Jean Wyllys, do PSOL, dizendo que “o crime não vai ficar impune nem a memória dela será esquecida”. Quinta-feira no Parque Lage, jardim na zona sul carioca, Caetano Veloso dividiu o palco com Maria Gadu e Marisa Monte num espetáculo de resistência — “o assassínio de Marielle e seu motorista é motivo de indignação para todos nós”, anunciou o diretor do recinto — para cantar “Podres Poderes”, enquanto o público gritava “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”.