CULTURAS

EFEITO FRANZEN

Arpad Kurucz/Anadolu Agency/Getty Images

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Cada novo romance de Jonathan Franzen é um acontecimento editorial.O mais recente, “Purity”, foi lançado esta semana nos EUA e chegajá na próxima terça-feira às livrarias portuguesas

TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA

Na capa da edição portuguesa de “Purity”, o novo romance de Jonathan Franzen — a lançar pela Dom Quixote no próximo dia 8, apenas uma semana após o livro ficar disponível para os leitores americanos —, vemos um sol estilizado e o título, que se mantém “Purity”, porque não se refere diretamente à ideia de pureza (embora também seja sobre isso), mas antes ao nome de uma das personagens principais, Purity Tyler, mais conhecida por Pip. Logo na primeira página, assistimos a um diálogo telefónico entre ela e a mãe, uma hipocondríaca que se lamenta das “traições do corpo”. Diz a progenitora: “Tenho a pálpebra esquerda a fechar-se. É como se tivesse um peso que a puxa para baixo, um minúsculo chumbo de pesca ou coisa assim.” Depois, acrescenta: “Vem e vai. Estou a pensar se não será paralisia de Bell.” A filha recusa-se a aparar-lhe os golpes: “Não sei o que é a paralisia de Bell, mas de certeza que não tens isso.” E quando a mãe lhe pergunta como pode ela ter tanta certeza, a conversa conclui-se com uma tirada implacável: “Não sei — será porque também não tiveste a doença de Graves? Hipertiroidismo? Melanoma?”

Esta abertura corresponde na perfeição ao estilo de Franzen. Os seus romances são vastos mosaicos sobre os desafios e paradoxos da vida contemporânea, mas partem sempre de elaboradíssimas radiografias da mais nuclear de todas as instituições: a família. É a partir da exaustiva observação das forças que aproximam e afastam as pessoas umas das outras que o escritor constrói as suas ambiciosas narrativas. Ambiciosas não apenas na escala, sempre na ordem das muitas centenas de páginas, mas sobretudo na intenção de captar o zeitgeist, o espírito do tempo. Foi assim com “As Correções” (2001) e com “Liberdade” (2010), que o projetaram definitivamente para o Olimpo das letras americanas, depois de dois primeiros romances (“The Twenty-Seventh City”, de 1988; e “Strong Motion”, de 1992) que foram elogiados pela crítica mas passaram quase despercebidos aos olhos do grande público.

A singularidade de Franzen está precisamente numa confluência rara: justapostos, temos o autor que é louvado pelos méritos literários, pelo grande fôlego das suas narrativas, pela perfeição das suas construções frásicas, e o autor best-seller, cujos livros vendem milhões de exemplares, cujos ‘soundbites’ provocam polémicas, cujas aparições públicas, seja em entrevistas ou conferências, enchem salas e páginas de jornais. Aos 56 anos, ele é uma das figuras mais relevantes, e também mais discutidas, da cultura americana. Quando “Liberdade” foi publicado, a revista “Time” fez capa com o seu retrato e um título que vai certamente persegui-lo toda a vida: “Great American Novelist” (“O Grande Romancista Americano”). Cunhado pelo escritor oitocentista John William De Forest, o termo “great american novel” designa um livro capaz de encapsular a essência da América numa determinada época, o equivalente aos grandes épicos nacionais das culturas europeias. Do enorme peso da responsabilidade, Franzen já não se livra. Nem das dúvidas que cada novo romance suscitará.

Greg Martin

Greg Martin

O certo é que Franzen está a corresponder, para já, às expectativas de quem espera dele uma certa continuidade. Como sempre, tomou o seu tempo, um confortável intervalo de cinco anos, e surge neste outono com mais um tijolo de quase 700 páginas (694 na edição portuguesa), logo anunciado como um “épico americano multigeracional”, que atravessa um lapso de seis décadas e uma geografia que abarca três continentes. De início, a narrativa centra-se em Purity, ou Pip, uma rapariga de 23 anos que sobrevive com dificuldade, asfixiada por um empréstimo universitário de cento e trinta mil dólares, partilhando por isso uma casa ocupada, em Oakland, com uma comunidade anarquista. No meio do caos da sua vida, pulsa uma questão identitária: Pip não sabe quem é o pai, mas quer muito saber. E o acesso a essa informação pode chegar através de um grupo — o autodenominado Projeto Luz Solar — que tem como objetivo expor segredos, na linha do que fez Julian Assange com o WikiLeaks.

Os romances de Franzen são vastos mosaicos sobre os desafios e paradoxos da vida moderna, mas partem sempre de elaboradíssimas radiografias da mais nuclear das instituições: a família

A partir de certo momento, o foco do livro transita de Pip para o líder do Projeto Luz Solar, um tal Andreas Wolf, nascido na antiga República Democrática Alemã, e para Tom Aberant, que dirige um site de jornalismo de investigação.

Embora não deixe de esmiuçar o carácter e a vida psicológica das personagens, a trama de “Purity” afasta-se da matriz puramente realista dos dois romances anteriores. Há mais ação, um homicídio, teorias conspirativas. É como se o autor fizesse questão de sair da sua zona de conforto, procurando outros caminhos. Numa conversa com Laura Miller, crítica literária da revista eletrónica “Salon”, durante um encontro público incluído na edição deste ano da Book Expo America, em Nova Iorque, Franzen admitiu que o trabalho de escrever romances se vai tornando cada vez mais difícil com o tempo, não mais fácil. “Um certo tipo de realismo discreto não consegue gerar energia suficiente” para que a narrativa progrida como deseja, explicou. “Em ‘Purity’, existiu talvez uma vontade de escolher situações mais extremas, de forma a conseguir chegar a esses momentos em que o texto se torna revelador.”

Um aspeto interessante do livro relaciona-se com a aproximação de Franzen às temáticas tecnológicas. A maior parte das suas personagens utiliza a internet e as redes sociais — como, escusado será dizer, a generalidade dos seus leitores —, mas ele, que desliga o WiFi enquanto escreve os seus livros, parece não ter problemas ao abordar temas como a proliferação de vídeos ou a pornografia online. Uma surpresa, se tivermos em conta a atitude de desdém que o escritor cultivou nos últimos anos, vociferando publicamente contra o Twitter (“É um meio irresponsável e inacreditavelmente irritante”; “ninguém consegue manter uma discussão séria a escrever 140 carateres”), contra o narcisismo do Facebook (“Aceitar um ‘amigo’ significa apenas que acrescentamos uma pessoa à nossa sala de espelhos privada”) e contra os e-books (“Quando lemos num ecrã, temos a sensação de que poderíamos apagar aquele texto, alterá-lo, perdeu-se o sentido de permanência dado pelo texto impresso em papel”).

Apesar da fama de misantropo com mau feitio, que não se livra de acusações de sexismo, sobretudo pela forma pouco lisonjeira como retrata muitas das suas personagens femininas, mas também porque o seu estatuto de “homem branco e intelectual” ofusca mediaticamente muitas escritoras que talvez merecessem o mesmo destaque, apesar do seu lastro de polémicas, a cada livro Franzen parece querer fazer jus à primeira regra do decálogo para o escritor de ficção que alinhou no “The Guardian”, em 2010: “O leitor é um amigo, nunca um adversário, nem um espectador.”

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