CULTURAS
A MÁQUINA DE LAMA
Nuno Botelho
Um jornal que não chega às bancas, uma redação-fantasma, uma conspiração em curso. A perda de inocência do jornalismo a bandeiras despregadas. É Umberto Eco a mostrar que ultrapassar os limites é mais fácil do que se pensa
Texto Luciana Leiderfarb
Um jornal pode não servir para informar e uma notícia pode não ser algo que realmente aconteceu. Esta é a premissa de “Número Zero”, o último romance de Umberto Eco, que acabou de ser lançado em Portugal pela Gradiva, com tradução de Jorge Vaz de Carvalho. Premissa que não deixa de parte um enredo rocambolesco e, bem à maneira do seu autor, uma boa conspiração à mistura. Mas que, sobretudo, não escamoteia a análise dos limites do jornalismo e de tudo o que não se deve fazer na profissão. Ao inverter os princípios que a norteiam, Eco mostra quão fácil é chegar-se a esse ponto e quão perto se está dele, mesmo em casos aparentemente insuspeitos. O jornalismo é o que é e o seu oposto. É tudo menos inocente.
“De facto, a reação de alguns grandes jornalistas italianos ao meu livro foi dizer: ‘OK, é verdade’”, contou-nos Umberto Eco quando o entrevistámos em Milão, no passado mês de março. O livro em Itália havia sido lançado há escassos meses, provocando o vendaval de comentários a que o escritor de 83 anos está habituado, mais ainda por se tratar de um tema quente apresentado com a queda para o absurdo própria da ópera bufa. Em resumo: um conjunto de redatores é chamado a fazer um jornal, “Amanhã”, destinado a jamais chegar às bancas e a ficar-se pelos ‘números zero’ necessários para se tornar uma influência junto de certos núcleos de poder. E um escritor falhado, ghost-writer e tradutor — o narrador desta história — fica com o cargo de documentar a experiência.
“Não é por acaso que o livro se situa em 1992”, explicou Eco. “Foi um ano trespassado pela sensação de que as coisas estavam a mudar. Houve grandes julgamentos para punir a corrupção política e, por outro lado, surgiu a figura de Berlusconi. Muito do que se diz no livro pode ser aplicado ao presente, pois os que estão no parlamento são os mesmos. E sei que a história do livro poderia ser contada, com variações, noutro país.” Tratando-se de Eco, a narrativa não podia ser linear. Questiona o pós-guerra, provando com argumentos lógicos — defendidos por Bragadoccio, jornalista que “anda à caça de conspirações” — que Mussolini morreu depois da sua anunciada morte e que todos fomos enganados, enterrando um sósia desfigurado do Duce. Toca em pontos sensíveis como o assassínio do Papa Luciani ou a ‘Operação Gladio’. Sobretudo, prova que “não são as notícias que fazem o jornal, mas o jornal que faz as notícias”.
“É uma utopia dizer que num jornal se podem distinguir completamente os factos das opiniões. O jornalismo faz as pessoas acreditarem que diz a verdade, mas essa verdade é umainterpretação”
“É uma utopia dizer que num jornal se podem distinguir completamente os factos das opiniões. O jornalismo faz as pessoas acreditarem que diz a verdade, mas essa verdade é uma interpretação. Há uma diferença entre ‘The New York Times’ e ‘The New York Post’, mas devemos abandonar a ideia de que um jornal é um espelho ou um vidro através do qual se olha para o mundo. Não, olha-se para o mundo através da mente de alguém. Em Itália, há quem defenda que os jornais devem ser lidos na escola. E não apenas um, pelo menos três, para que os alunos aprendam a comparar”, diz Eco. O escritor nega que o seu olhar seja negativo ou pessimista — ele que gosta de televisão e de jornais, que toda a vida escreveu em jornais. Simplesmente, “não é neutral a escolha de pôr uma notícia na primeira página ou na décima”, sublinha.
Entre os mecanismos da má imprensa está o da insinuação, como o prefigura o livro: “Para rebater uma acusação não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador.” Umberto Eco detém-se neste aspeto por ter sido dele vítima, quando um tabloide fez notícia de um jantar num restaurante chinês em que participava. Ao que parece, escreveu-se que estaria acompanhado “por uma pessoa desconhecida”. “A insinuação funciona dizendo algo aparentemente normal sobre alguém, mas que lança uma sombra, uma suspeição. Em Milão ou em Roma há restaurantes chineses, mas nas pequenas vilas não. E as pessoas podem achar estranho que eu coma uma refeição com pauzinhos, ainda para mais com alguém desconhecido!”, ri-se Eco. Mas o assunto é sério: “Nos últimos anos tem vindo a crescer aquilo que em Itália chamamos de macchina del fango [máquina de lama]. Não é indispensável provar que alguém é criminoso ou perverso, basta dizer que mexe o rabo de uma maneira estranha. Há demasiado jornalismo a fazer isto.”
“Número Zero” é também sobre uma Itália em mutação e em processo de se perceber a si mesma. Sobre o país que o narrador diz estar a tornar-se “definitivamente Terceiro Mundo”, onde “tudo tem sempre a ver com tudo, sabendo ler as borras do café”. Ele não tem dúvidas quanto ao futuro — e o futuro dele é o nosso presente: “Não mais claros-escuros do barroco, coisas de Contrarreforma — os tráficos emergirão en plein air, como se os impressionistas os pintassem: corrupção autorizada, o mafioso oficialmente no parlamento, o evasor fiscal no Governo, e na prisão só os pilha-galinhas albaneses.” Experimentando no fim “uma calma desconfiança no mundo” que o rodeia, resta-lhe esperar. É também o que sente Umberto Eco? Não, de forma categórica: “O narrador chega a essa conclusão quando aceita o seu destino. E como nunca foi um criador nem um vencedor, rende-se. Eu não me estou a render: escrevi a história. É a minha forma de não me render.”