SENTIR

SENTIR

POR JOSÉ GAMEIRO

Velhos amantes

O amor fica estranho passado uns tempos de ter começado

Tenho a certeza que nos voltaremos a encontrar. Nem eu nem tu sabemos quando, nem onde, nem como, mas tenho a certeza.

A vida passou-nos ao lado, desculpa a vulgaridade da expressão, mas não me ocorre outra, para te dizer que tivemos tudo e eu fui-me embora. Fui de repente, sem pré-aviso, também não me procuraste, sempre tiveste essa rara qualidade nas mulheres de não querer escalpelizar tudo. Não interessa porquê, nem sei bem explicar-te, ao contrário de muitos amantes que se separam, nunca senti nada que me pudesse impedir de ficar contigo.

Mas aconteceu.

O amor fica estranho passado uns tempos de ter começado. Dizem que a paixão está condenada a desaparecer e a dar lugar a uma coisa muito mais mal definida, uma mistura de amor, atração, amizade, solidariedade, interesses comuns. É muita coisa para gerir, a paixão é muito mais fácil, basta vivê-la e deixar correr.

Fui-me embora, mas voltei muitas vezes cheio de saudades do teu corpo, de conversar contigo, de saber de ti. Bem sei que fugazes, esquivas, mas muito fortes. Quando estava a passar por tempos difíceis era em ti que pensava, enchia-me de coragem e ia conversar contigo. Tu fazias o mesmo. Sempre tiveste aquele jeito, muito raro, de me entenderes, sem nunca mostrares que estavas magoada, conheces-me como ninguém, sabendo muito bem que o que poderá ser bom para mim não o é para ti.

Estou a escrever-te no dia em que morreu o Charles Aznavour. Marcou a nossa geração, mas não me lembro de o ouvirmos em conjunto. Nós era mais livros e política. Mas a primeira pessoa em quem pensei foste tu, vá-se lá saber porquê?

Hoje somos amigos, confiamos inteiramente um no outro, sabemos de cada um o que mais ninguém sabe, mas a mim sabe-me a pouco, a ti também, penso que sim. O pouco que falamos é de política, livros, como no passado, e fugimos de falar da nossa história. As raras vezes que o fizemos, nunca houve azedume, pelo contrário, transformaste o teu sofrimento em compreensão.

Nenhum de nós é crente, portanto a ideia do encontro noutra vida não nos faz sentido, mas será injusto que isto só tenha um fim com a morte de um de nós. Lembras-te que quando estive muito doente fui ter contigo? Lembras-te que quando passei por uma grave crise pessoal fui ter contigo de madrugada? Deitámo-nos lado a lado, como se fossemos dois amigos de infância e nada aconteceu, como já não acontecia há muito tempo.

Apesar de ter a certeza que nos voltaremos a encontrar, também tenho a certeza que este encontro é quase impossível.

Viveremos desta certeza incerta o resto da vida, sabendo que não há quase dia nenhum em que não pensemos um no outro.

É esta a nossa versão da ‘Nous Nous Reverrons Un Jour Ou L’Autre’.