Música

Do macaco para a macacada

André Henriques no protagonista da “Canção do Bandido”, de Nuno Côrte-Real, no Teatro da Trindade <span class="creditofoto">foto Bruno Simão</span>

André Henriques no protagonista da “Canção do Bandido”, de Nuno Côrte-Real, no Teatro da Trindade foto Bruno Simão

Apesar do trunfo de um bom texto, a nova ópera de Nuno Côrte-Real sofreu com a mise-en-scène

Texto Jorge Calado

Nuno Côrte-Real (n. 1971) é um compositor eclético e prolífico que experimenta tudo mas acerta pouco. Fundou e dirige o Ensemble Darcos para promover a sua música ao lado da de Beethoven, Brahms e Debussy. Faz programação, compõe, dirige e grava, saltitando de género para género. A dispersão é má conselheira. Less is more. A sabedoria popular ensina-nos que “ao que muitos burros toca, sempre algum lhe fugirá”. A Côrte-Real têm-lhe fugido vários. Que eu saiba, “Canção do Bandido” é a sua sexta ópera. Mas muda de libretista como quem muda de T-shirt. É um Dom João da arte musical. E assim vai desbaratando o seu talento e uma facilidade inata para a composição, frustrando e desconcertando os seus admiradores.

Desta vez, escolheu Pedro Mexia para coautor, propondo-lhe como tema a lengalenga do “Macaco de Rabo Cortado” que acabou por ir para Angola. Tal como acontecera em 2011 com Vasco Graça Moura e “Banksters” (vagamente inspirada em “Jacob e o Anjo”, de José Régio), Mexia achou por bem passar ao lado do Macaco e tomar o Dom João como mítico modelo (lá está, à entrada, na apresentação do protagonista, a referência a ‘mil e três’ — o número de amantes espanholas do burlador de Sevilha). O melhor do espetáculo ainda é o texto, engraçado, alusivo e repetitivo, como manda a ópera. Uma viagem fonética que corre Asseca e Meca (e olivais de Santarém). Só é pena não haver sobretítulos, nem se terem dado ao trabalho de reproduzir o libreto na paupérrima folha de sala (sem biografias, sem sinopse, sem explicações do compositor, sans everything). A música, de contornos jazzísticos e populares e incrustada de frases melódicas, não atrapalha (mas também não evolui). Há trompas, trombones e tuba, tímpanos e percussão (com convulsões e ostinati à mistura), às vezes mal tocadas, benza-as Deus. Quase no final, um arremedo ao prelúdio de “Der Rosenkavalier”, de Richard Strauss, declaradamente a foda posta em música. Dirigia o compositor, mas nem sempre me pareceu que a Orquestra Sinfónica Portuguesa respondesse da melhor maneira.

A ópera é a forma mais exaltante de teatro. Não foi o que aconteceu. O encenador Ricardo Neves-Neves (espero que Mexia não tenha achado cómica a redundante repetição do apelido, aliás altamente operática) optou por uma direção revisteira, plena de clichés — das mesas cambadas aos trejeitos e momices das fêmeas e às interjeições do coro nos camarotes adjacentes ao palco. O cenário atabalhoado de Henrique Ralheta evoca a origem tropical da história com o painel decorado a folhas de costela de Adão. Os figurinos de Rafaela Mapril (com penteados a condizer) acentuam a comicidade, e o público vai rindo com os esgares das cantoras e com as palavras que não entende. No palco que em 1959 viu Francisco Ribeiro (o Ribeirinho das comédias de ouro do cinema português) encenar e representar “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett, recria-se a estética de “O Preço Certo” com a sua graçola fácil e inane e a apologia da ignorância. A inteligência do texto de Pedro Mexia some-se por todos os buracos.

Num elenco homogéneo de seis cantores, houve o cuidado de contrastar (mesmo musicalmente) o protagonista e o seu trio de vamps com os seus opositores: o Oponente propriamente dito e Guadalupe, a mulher que aplica o coup de grâce (reservado na ópera de Mozart ao Commendatore). Sucede que os intérpretes mais sóbrios, Marco Alves dos Santos (Oponente) e Sónia Alcobaça (Guadalupe) são também os mais eficazes. Coube até a Alves dos Santos a melhor tirada (musical) da noite com a veemente ária ‘De todos os órgãos o mais repelente’ (imaginam qual é...), a rematar a segunda das três cenas da ópera. Mal dirigidas, Cátia Moreso, Inês Simões e Bárbara Barradas integram o rol de conquistas, cada uma à sua (exagerada) maneira. Resta André Henriques no Macaco (aliás, o homem-falo): um sedutor hipercinético de meia tigela com um canto simples e direto. No final, Guadalupe destrói-lhe a cassete-bateria. Moral da história: o macaco de rabo cortado não passa de um dissoluto castrado.