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AS RAÍZES TAMBÉM SE CRIAM NO BETÃO

Kader Attia

Culturgest, Lisboa, até 6 de janeiro de 2019

Nem sempre o encontro entre ativismo político e preposição artística consegue fazer mais do que exibir a irrelevância política do estético ou a estetização da política. Com uma cultura que sobrepõe as raízes no Norte de África ao crescimento nos subúrbios de Paris, o franco-argelino Kader Attia (Paris, 1970) parece ter o antídoto para esses dois equívocos. Cruzador de culturas, de paisagens e arquiteturas, Attia oferece quase sempre experiências sensoriais que se tornam políticas ao exporem-nos empiricamente às manifestações mais subterrâneas do poder e às pequenas e grandes resistências que o seu exercício também gera. A violência do colonialismo, os seus ecos no presente e a necessidade de reconstruir e reavaliar a memória coletiva a partir do lugar do oprimido e excluído são motivações para as suas obras, mas são as experiências e imagens paradoxais que elas evocam que produzem a sua acutilância. É assim, p. ex., na obra “Kasbah” (2010), um chão vertiginoso densamente povoado de chapas metálicas e antenas parabólicas que lembra a configuração irregular dos telhados de um bairro da lata que atravessamos, enquanto, em fundo, se mostra o filme sobre o edifício “La Tour Robespierre”, com a sua estrutura racio­nal; de “Untitled (couscous)” (2009), um tapete circular de cuscuz onde se desenham plantas de casas da cidade de Ghardaia, no Sara argelino; a betoneira recheada com cravinho que liga os aromas do Norte de África à mão de obra da construção civil (“Parfum d’exil”, 2018) ou as fotografias de transgenders argelinos que colocam o corpo, pessoalmente resgatado, no centro de uma biopolítica que encontra quase sempre configurações artísticas capazes de se alojarem em feridas abertas ou traumatismos coletivos ainda por sarar. / Celso Martins

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EXTINÇÃO

Salomé Lamas

Museu de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, até amanhã

Em 2015, a Federação Russa anexou a região da Crimeia, até então parte da Ucrânia, numa manifestação possante e simbólica de reanimação do seu poder imperial. Salomé Lamas filmou “Extinção” durante o período mais dramático da crise, captando imagens em quatro países da região e acedendo assim às múltiplas fricções fronteiriças resultantes de reformulações dos equilíbrios de poder regionais que convocam fantasmas históricos ancestrais e projetam novas formas de dominação política e ambiguidade identitária. Misturando elementos documentais e ficcionais, o filme a preto e branco e sempre mergulhado numa atmosfera asfixiante segue o trajeto de Kolja, jovem cidadão da Moldávia que, em trânsito entre check points e interpelações dos serviços secretos quer fazer valer a sua pertença à Transnístria, uma república autoproclamada na sequência das convulsões políticas que se seguiram à queda do muro de Berlim. “Extinção” é assim um objeto fílmico habitado pela penumbra e pelo desapossamento individual num mundo kafkiano e burocrático onde os velhos enquadramentos ideológicos e os símbolos históricos se reformulam e traficam numa arena política contaminada pela corrupção e pela desesperança. Neste ambiente, Lamas encontra um lugar determinante para a arquitetura, nomeadamente a construção comemorativa, e faz dela uma personagem central mas não declarada do filme, com o seu índice recorrente de permanência e potência. Entre o memorial aos 1300 anos da nação búlgara (Shumen) e o dedicado ao partido comunista daquele país (Buzludzha), aconchegam-se o nacionalismo e os escombros do comunismo “real”. Tudo o que existe parece viver entre essas duas referências, num lugar ermo e escuro. É nele que mergulhamos em “Extinção”. / C.M.