ENCONTROS DE CASCAIS

Debate A primeira edição juntou académicos, empresários, cientistas, gestores para debater o futuro de Portugal. Este foi o primeiro resumo da reunião feito pelos relatores e tal como foi lido no jantar de encerramento pelo diretor do Expresso

Um prólogo do que queremos fazer

Texto Pedro Santos Guerreiro Fotos José Fernandes

Foi um dia extraordinário. De partilha de conhecimento, de confronto de ideias, de participação entusiasmada de tanto, de tantos, de todos. Na primeira edição dos Encontros de Cascais parámos para avançar e pensámos para fazer.

Ao longo de quatro painéis, debatemos muito mais do que os seus temas específicos. Fizemo-lo ao abrigo das Chatham House Rules, que visa encorajar a abertura e a troca de conhecimento, prevendo que a informação seja usada protegendo a identidade de quem a partilhou. E assim falámos muito de tecnologia e sociedade, sim, mas falámos muito também de outros assuntos que não estavam explicitamente previstos nos painéis. Temas como a demografia, a geografia, a necessidade de valorização do país e da sua história, e da estabilidade das políticas públicas para lá de cada legislatura. Mas nenhum dos temas colaterais foi tão central, permanente e transversal como um: a educação.

Os painéis do programa debruçaram-se sobre quatro grandes temas da contemporaneidade: 1) Portugal na situação geopolítica atual, 2) o futuro da democracia e o papel dos média na era das redes e das fake news, 3) como criar um melhor ambiente digital e eliminar os entraves ao crescimento e 4) a armadilha geracional e os limites da inovação tecnológica. Resumamo-los, não como epílogo do que fizemos, mas como prólogo do que queremos fazer — e ver fazer.

No primeiro painel, falámos de Portugal na situação geopolítica atual, uma situação em que uma “nova” América despreza o multilateralismo e ataca a unidade político-económica da Europa. Mas Portugal — país pequeno, frágil, pobre e endividado, de poder limitado, sem grande capacidade de autodeterminar o seu futuro — apostou as suas fichas numa ordem internacional regulada. O fim do multilateralismo reduz fortemente as nossas opções.

O que fazer? A melhor forma de gerir as dependências é multiplicá-las por vários tabuleiros multilaterais, nalguns casos por modelos de cooperação, noutros com partilhas reguladas de soberania. Ou seja, equilibrar as relações transatlântica, lusófona e europeia — e captar investimentos mesmo de outras geografias. Estaremos nesse caso a diversificar risco, mas pode isso obrigar-nos um dia a termos de optar por um dos lados — ou optarem outros por nós?

Podemos também olhar para o futuro de outra forma, contrapondo escala e tecnologia. Porque num mundo em que a União Europeia e os Estados Unidos pesarão cada vez menos no PIB mundial e a China cada vez mais, e em que a demografia está num crescimento acelerado mas a natalidade se contrai no mundo ocidental, é a ciência e a tecnologia que podem fazer dos países menores... países maiores.

De forma mais ou menos explícita, passámos o dia a falar de tempo. Do tempo que o mundo parece não ter, ou não querer ter, nesta aceleração vertiginosa que conduz os indivíduos à impaciência

Só que a tecnologia deixou de estar focada na produção e passou a estar centrada na conectividade, na capacidade de gerir dados e extrair deles valor. Depois do offshoring da produção, estamos a promover o offshoring da nossa inteligência. Esta evolução da tecnologia assegura um crescimento na Economia, mas será ela boa para a democracia? Na verdade, constatamos que temos mais dados mas menos escolhas, mostram-nos o que queremos ver. E assim a tecnologia não está a gerar algo mais racional, está a criar um homem mais emocional.

Com o avanço da tecnologia, a geopolítica localizou-se. O desafio é: como digitalizar a democracia? Porque digitalizar as instituições não é fazer PDF de documentos e manter todos os processos inalterados. Os políticos continuam longe do entendimento digital, a tentação é regular um mundo que já não é físico como se ele ainda fosse físico. Incluindo na legislação, processo que por vezes demora anos, entrando em vigor para regular produtos que nessa altura já nem sequer existem. O que temos é de criar legislação sobre princípios e não sobre produtos. E o que temos é de promover o envolvimento das pessoas nos processos de decisão: não basta abrir websites e pedir-lhes para participar. As pessoas não querem que os políticos lhes digam qual é o futuro, querem também desenhá-lo. Mas a pergunta persiste: como resolver a dessincronização entre política e economia?

Se inovo mas não difundo, não aumento a produtividade, mas o motor da difusão da inovação está gripado. E a difusão da inovação passa pela educação. Ora, a revolução digital está a transformar a educação (de alguns) mas não está a substituir os seus métodos antiquados (para a maioria). Uma cultura que promova a inovação tem de ser uma cultura de confronto. Em Portugal evitamos o confronto, não queremos aborrecimentos. E o país precisa de confrontação positiva, de defender desígnios e de assumir o trabalho que dá afirmar esses desígnios.

Na Europa, temos ainda assim uma oportunidade extraordinária, pois o centro da nossa diferenciação vai estar nos valores. A base do avanço para a inteligência artificial na Europa deve ser o Humanismo. Temos de ter a ética humanista como base para as escolhas certas.

E foi assim que chegámos ao segundo painel.

O futuro da democracia e o papel dos media na era das redes e das fake news

Vivemos num tempo tão acelerado e imediatista que a nova unidade de tempo é o nanoprazo. Fazemos negócios em minutos, compramos sem sair de casa, passamos à frente o que queremos ver na TV, tudo nos enerva quando algo nos atrasa, exigimos as respostas mais rápidas e mais simples, tornamo-nos seres impacientes, intolerantes com a demora.

Mas a democracia exige demora. Demora para refletir, estudar e tomar a melhor decisão para todos, defendendo a parte mais fraca. Ora a discrepância entre o tempo exigido pela democracia e o que estamos dispostos a tolerar é fraturante. Esta perceção do tempo cria a noção de que a democracia é dispensável. O que parecer ser exigido são pessoas que decidam rápido e bem. Criou-se um clima propício ao populismo. A maioria agarra-se ao que conhece e ao que o identifica. Reforçam-se os critérios identitários e os nacionalismos. E a verdade, que não é rápida, não é simples, não é para hoje, deixa de interessar. Ganha terreno a simplificação. Ora a simplificação provoca a polarização. E esta polarização nem sequer é política é uma polarização moral. Cria-se na sociedade um grupo que se assume como o único patriótico, todos os outros são traidores, bastardos, estão feitos com o sistema.

Também a política portuguesa começa a ser assim. A discussão faz-se agora num clima de superioridade moral, em que o que conta não é o mérito das propostas, o que se discute é a intenção de quem propõe. Neste quadro, os moderados são os novos apátridas. A polarização é a nova pátria da maioria dos políticos.

O maior desafio é recuperar os valores da verdade e da liberdade — os valores da democracia. Mas como entram nisto os fenómenos de comunicação, o jornalismo, as redes sociais, as fake news? Da mesma forma que as tiranias e as ditaduras não souberam conviver com a evolução tecnológica anterior, as democracias estão a confrontar-se com a necessidade de saber conviver com as tecnologias: elas podem estar a mesmo a ajudar a inverter um ciclo que chegou a ser apontado como o fim da história, para afinal fortalecer regimes contraditórios. E no entanto, lembremo-nos que, depois da Primavera Árabe, o Twitter chegou a ser proposto para Prémio Nobel da Paz. Quatro anos depois, Donald Trump mostrou como ganhar campanhas eleitorais fazendo uso total das ferramentas tecnológicas e das redes sociais.

As pessoas não querem que os políticos lhes digam qual é o futuro, querem também desenhá-lo

Não sabemos se a democracia se salva, mas, para se salvar, terá de usar todas as armas disponíveis. Incluindo as da tecnologia e as das redes sociais.

O papel do jornalismo é o de sempre, a sua essência não muda. Mudam os fundamentos económicos, os públicos, os canais, a tecnologia mas, tal como com a democracia, também não adianta defender o jornalismo sem usar todas as armas disponíveis. Denunciar fake news sim, mas sobretudo fazer o contrário e sublinhar essa diferença.

As redes sociais são invenções extraordinárias. A grande diferença é o que está por trás, o algoritmo, mas como desconstruir esse mecanismo se as redes têm a lógica de audiências e de receitas que contribuem diretamente para dispersar vertiginosa e enviesadamente notícias e fake news? É perigoso e ao mesmo tempo fascinante viver este tempo. Mas devemos ficar por dentro. Usando uma imagem: se estamos a descer os rápidos, não devemos pôr o remo na água. Quem ficar de fora a discutir a democracia e não souber usar aquelas armas tem menos hipóteses de ganhar e de lutar pela democracia, ajudando a criar um vazio que outros ocuparão. Porque não há vazios em política.

Como criar um melhor ambiente digital e eliminar os entraves ao crescimento

À tarde, continuámos a falar de tecnologia. O ambiente digital não é uma realidade etérea, mas uma realidade tangível e intangível, que envolve não apenas o Estado mas diversos stakeholders — e todos, mas mesmo todos, estamos convocados. Se Portugal está ainda abaixo da mediana no índice da digitalização da UE, o que podemos fazer?

A maior parte dos entraves ao crescimento não são digitais, são analógicos: a restrição demográfica, a promoção do mérito e das lideranças, uma sociedade avessa à mudança e ao risco, a volatilidade nas políticas públicas, um modelo administrativo ultrapassado, a falta de qualificações. Se estamos todos convocados, então é preciso fomentar contratos sociais, entre público e privado, entre grandes e pequenas empresas e com o terceiro sector. E ter coragem para fazer escolhas, escolhas duras, sabendo que haverá perdedores, mas que serão apostas de futuro.

Foram apresentadas propostas a três níveis: 1) as condições de base: abertura ao comércio e ao investimento, apoiar bens transacionáveis, criar um ambiente ágil e desburocratizado, olhar para os cidadãos e empresas como pessoas de bem, fazer um pacto na justiça, ter uma regulação mais simples e benigna, estimular ecossistemas abertos; 2) a componente humana: acolher a imigração para responder à queda demográfica, criar um pacto de regime para as qualificações, e até alguém propôs abrir o sistema educativo tradicional à iniciativa privada; 3) a infraestrutura: além da conectividade, a interoperabilidade, a aposta em tecnologias horizontais e nos digital innovation hubs.

Chegámos aqui, a esta tecnologia, pela convergência de dados, mobilidade e conectividade. E tudo acelerou. Vejamos como em casos diferentes se chegou a 50 milhões de utilizadores: nos aviões foram anos, no Facebook foi pouco mais de um ano, no Pokemon Go foram... 19 dias.

O valor das empresas nas economias está cada vez mais baseado na tecnologia. Mas e o capital? Se não fossem os investidores americanos, a Feedzai não existiria, pois em Portugal o investimento em tecnologia está a diminuir. Dos 86 milhões que a empresa levantou, só quatro milhões foram portugueses. Mas as quatro maiores companhias tecnológicas portuguesas valem nove mil milhões de euros, tanto como CTT, Sonae, BCP e Navigator juntas.

Fechámos o dia com um painel sobre a armadilha geracional e os limites da inovação tecnológica. Vemos o mundo a envelhecer rapidamente. O mundo... e Portugal. Mas este desafio da demografia é acoplado pelo desafio da tecnologia.

A capacidade para aprender com os dados está na base de aplicações de inteligência artificial. Um dos desafios é a questão da privacidade, mas também a deslocação do valor; a substituição por máquinas de profissões antes realizadas por seres humanos, incluindo de call centers, assistentes pessoais, juristas mais novos ou radiologistas. Há uma terceira área, que ainda não é importante do ponto de vista económico mas já o é do ponto de vista filosófico: o desenvolvimento de técnicas que aproximem a inteligência artificial da inteligência humana. É ainda difícil prever quando e se isso funcionará, mas se funcionar, terá um impacto social enorme. Muitos trabalhos serão substituídos e surgirão muitos novos empregos, mas aí surge o desafio da qualificação. E há o desafio da concentração do rendimento, uma vez que as grandes empresas vão conseguir resultados com menos recursos humanos. Isso, aliás, já é visível nos EUA, onde os rendimentos de trabalho estão estagnados há quase uma década. O capital está a tirar mais partido do valor acrescentado do que o trabalho.

Quando acoplamos este desafio com o da natalidade, confirmamos que vamos ter de “importar” pessoas e de aproveitar socialmente melhor cada um dos nossos jovens. A questão central está pois na educação. A educação deverá criar valor e permitir melhorar a sua redistribuição. A educação nos escalões etários mais baixos é o maior problema. Ela não acompanhou a evolução da sociedade e da tecnologia.

Aliás, a armadilha geracional pôs-nos a olhar para trás. Porque não perguntamos aos miúdos o que querem para o mundo de amanhã? Não é só por de outra forma eles serem excluídos, mas porque eles têm a energia que os mais velhos já não têm, a energia para mudar o mundo. O que as gerações adultas aprendem é que é tudo sempre a subir, elas querem ter progressões lineares, pensam que mudar de trabalho é mau e que no fundo é tudo uma questão de dinheiro. Mas os millennials não pensam assim, o que gera um confronto entre gerações.

O que dizem os millennials? “Não queremos um emprego para vida. Queremos equilíbrio entre trabalho e família. Deem-nos oportunidades para sermos líder. Decidimos de acordo com os nossos valores pessoais. O foco das empresas deve ir além do lucro. A sustentabilidade é importante”. Eles esperam emoção. Querem líderes empenhados em melhorar a sociedade.

Como pensamos a tecnologia para amplificar, em vez de limitar, as pessoas e o trabalho? Devemos pensar mais em tarefas e competências, em vez de empregos e graus. Isto obriga a pensar o mercado de trabalho em termos diferentes, pois muitos empregos vão desaparecer. De novo o fim de empregos e os novos empregos. De novo a necessidade de competências técnicas e tecnológicas, mas também sociais e emocionais. De novo o problema não ser o de não haver trabalho, mas o de ele ser equitativo e inclusivo, de não deixar de ninguém de fora nem produzir sociedades desiguais.

Aqui, nos primeiro Encontros de Cascais, falámos de muitos temas, levantámos muitas questões, analisámos tendências, tirámos conclusões. Mas, de forma mais ou menos explícita, passámos o dia a falar de tempo. Do tempo que o mundo parece não ter, ou não querer ter, nesta aceleração vertiginosa que conduz os indivíduos à impaciência, à resposta rápida à pergunta súbita, à exigência de uma ação instantânea e reação imediata. Uma impaciência que não nos está a levar à simplicidade, mas à simplificação. Só que o mundo é complexo, o mundo que não tem tempo para ter tempo precisa de reflexão, de pensamento, precisa de clarificação para atingir a claridade. Foi o que fizemos hoje: tivemos tempo; demo-nos tempo. Tempo para falar e para ouvir; para confrontar outros e nos confrontarmos a nós próprios.

Todos queremos chegar mais longe. E como todos conhecemos a fórmula da distância, sabemos que ela não depende apenas de velocidade. Depende do que hoje nos demos uns aos outros. Depende do tempo. Pelo tempo que todos nos demos, muito obrigado.

Cascais, 17 de novembro de 2018

Com os relatores Henrique Monteiro e José Gomes Ferreira