Atletismo

A prova de honra da vida de Braima Dabó

Braima Dabó treina sozinho na pista do Instituto Politécnico de Bragança, sob orientação de José Regalo, treinador do Atlético Clube da Maia, onde o guineense faz exercícios específicos aos sábados <span class="creditofoto">Foto Rui Duarte Silva</span>

Braima Dabó treina sozinho na pista do Instituto Politécnico de Bragança, sob orientação de José Regalo, treinador do Atlético Clube da Maia, onde o guineense faz exercícios específicos aos sábados Foto Rui Duarte Silva

Nos Mundiais de Atletismo, o nome de Braima Dabó correu mundo, não por subir ao pódio, mas por se revelar um campeão do fair play. Em Doha, o atleta guineense, a estudar em Portugal há oito anos, carregou até à meta, nos 5000 metros, o cambaleante adversário de Aruba

Texto Isabel Paulo Fotos Rui Duarte Silva

No próximo dia 23 de novembro, no Mónaco, Bramia Suncar Dabó será um dos quatro candidatos ao Prémio Fair Play, na Gala da Federação Internacional de Atletismo. O anónimo atleta guineense, que participou no recente Mundial, em Doha, no Qatar, ao abrigo de um sistema de quotas de países sem mínimos para competir, estará entre a elite da modalidade, não por carregar uma medalha ao peito, mas por ter ajudado o atleta de Aruba, Jonathan Busby, a cortar a meta na última volta da primeira série dos 5000 metros.

Bramia, de 26 anos, na cauda do pelotão, quando se preparava para ultrapassar o adversário caribenho, reparou “que corria aos tombos”, prestes a desfalecer. Sem hesitar, agarrou-o e, abraçados, franquearam a meta da corrida, que viria a ser ganha pelo etíope Selemon Barega . “Vamos, vamos conseguir”, encorajou Braima, ovacionado no Estádio Internacional Khalifa. A imagem correu mundo, num palco onde as luzes da ribalta se destinam aos novos campeões, os heróis que superam recordes próprios e alheios ou batem marcas históricas.

Nesta história, o final feliz desafiou, contudo, a lógica do cronómetro, controlada pela ditadura dos tempos. Sem contemplações para contratempos, o júri desclassificou o exausto Busby, de 33 anos. O pecado? Ter ultrapassado a linha da meta suportado pela força do estranho corpo amigo. “Nunca imaginei que isso ia acontecer e que essa regra existia”, refere Braima, no final de um treino na pista do Instituto Politécnico de Bragança (IPB), a contar as semanas para concluir o curso de Gestão e abalar para Catió, na Guiné-Bissau, onde o esperam os pais e os oito irmãos, que não vê há oito anos.

De socorrista ilegal a embaixador de Aruba

A ajuda “ilegal” não impediu que o Governo de Aruba tenha nomeado Bramia para Embaixador da Boa Vontade ou que um membro da família real do Qatar o tenha presenteado com um envelope. “Não queria aceitar, que o que fiz foi natural, mas fizeram-me sinal que era má educação recusar”, diz Bramia. Até agora não sabe o valor da oferta.

Bramia a treinar na pista do Instituto Politécnico de Bragança

Bramia a treinar na pista do Instituto Politécnico de Bragança

À chegada ao aeroporto do Porto, entregou o dinheiro ao seu pai português, Tito Baião, presidente da ONG Na Rota dos Povos, que, com a mulher, Susana, o acolheu na sua casa, em Matosinhos, em 2011. Tito já foi ao Banco de Portugal tentar trocar os Rial, sem sucesso até agora. “Uma complicação”, afirma Tito, ainda à espera que o filho “de coração” decida o que fazer com a recompensa. “Eu não quero nada. O pai sabe o que é melhor...”, diz Braima, que, por timidez ou saturado de tanta exposição, não esbanja na oratória.

“É timidez”, garante Tito Baião, recordando que, perante o turbilhão mediático, a primeira tentação de Braima foi “trancar-se” no quarto de hotel. “Pedi-lhe para não se esconder, pois era natural o interesse dos jornalistas numa história de desapego, quando o normal numa competição é superação individual”, diz Tito. O rapaz a quem Tito aponta como único defeito a teimosia, acabou por vencer a pressão, não se recordando de quantas entrevistas deu. Lembra-se em especial de um jornalista da agência noticiosa EFE, mensageiro da sua nomeação ao prémio Fair Play.

“Vença ou não, fico feliz”, afiança, sem esconder que gostaria de ir ao Mónaco. “A Federação da Guiné está a tratar disso, e os meus padrinhos, pais da Susana, já disseram que vão comigo”, revela, animado.

Assalto-moche e o louvor dos profs

Instado a contar como foi a receção dos colegas no retorno à Escola Superior de Tecnologia e Gestão, em Bragança, sai-lhe um sorriso rasgado, recordando o moche dos colegas. Por unanimidade, o Conselho Geral do IPB aprovou um voto de louvor, “pelo ato abnegado de solidariedade, desportivismo e fair play” do aluno da casa, a quem foi entregue a bandeira da instituição.

Ao Expresso, o presidente do IPB, Orlando Rodrigues, assegura que a atitude de Braima em nada o surpreendeu: “Ele é exatamente assim. Um rapaz simpático, solidário, que lida facilmente com colegas de outras culturas”. Os colegas de residência também não lhe regateiam elogios: “É mesmo dele, é boa pessoa”, comenta Mussa, recém-chegado ao IPB e que já conhecia Braima de Catió. Defeitos? “Come muito, mas como é ele que cozinha quando não há cantina...”, atira entre risos o parceiro de residência, com quem partilha o gosto pela música afro, sobretudo quizomba.

Alfa, um dos 14 pioneiro(a)s que viajaram de Catió para estudar em Mirandela ou Bragança, ao abrigo de um protocolo firmado com a ONG Na Rota dos Povos, que garante aos estudantes isenção de propinas, cantina e alojamento gratuito, também não se espantou com a pronta ajuda do amigo: “É assim. Gosta de conviver. É capaz de abandonar o seu plano de treino para correr com o grupo, apesar de levar na cabeça do treinador.”

Braima Dabó, muçulmano não praticante, ainda perplexo com tamanha reação a um gesto que, repete, foi ”imediato”, confessa não saber se teria ajudado Busby se em jogo estivesse um apuramento na eliminatória: “Não consigo dizer. Na pista, Jonathan apenas lhe soprou “thanks, thanks”. No dia seguinte, recuperado o fôlego, o atleta de Aruba agradeceu-lhe, num diálogo em espanhol e 'portunhol'.

Um dia de cada vez

Esta não é a primeira vez que um ato solidário trocou as voltas ao destino do rapaz nado em Catió, capital da desfavorecida província de Tombali, na Guiné-Bissau. A numerosa prole Dabó cresceu sem luxos de água corrente e eletricidade, fornecida por um gerador que funciona das 19h às 1h da manhã. Braima, terceiro dos nove filhos de um inspetor escolar, já reformado, foi confrontado em setembro de 2011, aos 18 anos, com um inesperado convite: viajar para Portugal para estudar, apoiado pela Na Rota dos Povos, que desde o início do século presta auxílio à população local, tendo por lema A Educação é o Único Caminho.

A ONG cofundada por Tito Baião, nascido no Zaire, presta apoio a meia centena de escolas na região de Tombali, equipadas com os despojos das requalificadas instalações da Parque Escolar - carteiras, mesas, cadeiras e computadores (sem internet). Em Catió, a ONG já equipou cinco bibliotecas, colabora com o Hospital Regional de Catió e criou a casa Mamé Ussai, destinada a órfãos, parte dos quais perderam a mãe no parto.

Para Braima, o início da aventura aconteceu a 23 de setembro de 2011, dia em que viajou para o Porto, após o pai lhe ter perguntado se queria vir estudar para Portugal. Até hoje, diz, não se arrepende, nem a família, com quem fala por WhatsApp. A primeira escala, partilhada por outros seis rapazes e sete raparigas, foi a casa de Tito e Susana, em Matosinhos. Elas instaladas no apartamento do casal, eles numa auto-caravana estacionada do outro lado rua.

“Ainda vêm quando podem e todos ajudam, com tarefas rotativas escritas num quadro”, diz Tito, que com a mulher adotou entretanto dois irmãos órfãos de Catió - Pedro e Maria, de 11 e 7 anos. Braima, antes de ingressar em Gestão no IPB, concluiu um curso de técnico agrário, na Escola Profissional de Agricultura e Desenvolvimento Rural, em Mirandela, ao mesmo tempo que, em Matosinhos, aos fins de semana, descobriu o gosto pela corrida, ao participar em provas de fundo e meio fundo.

Começou a praticar atletismo através de Jorge Teixeira, da Run Porto, antes de ingressar no Maia Atlético Clube, fazendo treino específico ao sábado sob a orientação do ex-atleta olímpico José Regalo. “É um atleta mediano, com margem de crescimento, e um campeão como pessoa”, afirma o treinador, enquanto o presidente do clube, Rui Borges, prefere contar um episódio ocorrido no Parque da Cidade, no Porto, antes da partida para Doha: “O Braima chegou junto do treinador com uma nota, achada no chão. Entregou-a, mas o José Regalo disse-lhe para ficar com ela, que a devolveria se aparecesse alguém a queixar-se.”

Tito Baião conta que cada estudante da ONG tem um padrinho, que auxilia com €30, para gastos de bolso. No final do ano, Braima regressa a casa a Catió, sem saber se de vez ou se volta para fazer mestrado. De uma coisa tem a certeza: é lá que quer criar raízes. A fazer o quê? “Depois vejo”, diz, com o desprendimento de quem sabe que o acaso existe. Outra garantia é a de continuar a correr até que as pernas lhe doam e ser voluntário da ONG que lhe mudou a vida.