Afinal, o PAN é carnívoro
O prato desta campanha é Costa com todos - tudo em aberto, tudo possível. Já do lado do PSD, não se percebe que Rio desminta o seu próprio programa. E André Silva provou que não é vegetariano em debate
“Somos bastante agnósticos. Faremos documentos escritos com quem entender e sem documentos escritos com quem não entender. Isso não é para nós uma questão essencial” António Costa, secretário-geral do PS, em entrevista à Antena1
10 valores no índice de fé política. António Costa não é bem agnóstico, acredita no que lhe der mais jeito em cada momento. Dizem que é hábil, mas é mais do que isso, é um pragmático que segue pelo caminho mais estreito ou mais largo que lhe aparecer à frente, desde que dê para caminhar. Ele adapta-se. Com uma maioria absoluta mais provável, mesmo assim o líder socialista mantém em aberto todos os cenários de governabilidade, pragmatismo oblige.
Tudo isto hoje nos parece normal, mas é a primeira vez que um primeiro-ministro em exercício vai para campanha com uma paleta de possibilidades nunca vista: do Bloco ao PCP, passando pelo improvável PSD, ao PAN que não existia e que agora pode ser o fiel da balança - só o CDS aparece fora da equação. O prato destas eleições é um Costa com todos e a maior originalidade é a disponibilidade de quatro possíveis aliados, o que retira polarização à campanha. São todos oposição, mas nenhum quer fechar pontes de diálogo.
Na verdade, mais do que agnóstico, António Costa quer converter os outros crentes ao seu agnosticismo. Ao preparar-se para gerir a legislatura ao estilo Guterres - com quem estiver disponível em cada momento - espera que sejam os outros a ceder na sua fé política para lhe viabilizarem os orçamentos. Como se tem visto, Costa só não é agnóstico numa coisa: na forma como consegue manter o poder. Para já, os deuses parecem favorecê-lo.
“A notícia foi manifestamente exagerada. O doutor António Costa provavelmente ouviu a notícia, acreditou nela, ele já tem experiência que chegue para não acreditar logo nas notícias, mas faz um comentário em cima de um pressuposto que não é exatamente assim” Rui Rio, presidente do PSD, 7 de setembro
9 valores no índice do conhecimento do seu próprio programa. Rui Rio tem uma obsessão com notícias e sobretudo com as que não lhe dão jeito. São exageradas, não é suposto acreditar-se nelas, etc., o problema é sempre do mensageiro. António Costa confessou-se “perplexo” com o facto de o PSD recuperar o tema da ferrovia da Alta Velocidade, quando é há muitos anos contra essa solução.
A maior perplexidade nem é essa. Os partidos podem mudar de opinião - e se compararmos este programa do PSD com o anterior, temos dois mundos diferentes. Portanto, a questão é outra. O que espanta é o líder do partido não assumir o seu próprio programa. Ora o que lá está escrito é o seguinte: “Estudar, planear e projetar uma nova ligação nacional Sul-Norte em Alta Velocidade, em bitola europeia, com as respetivas ligações à fronteira e à Europa”. Rui Rio não diz que vai fazer o TGV no dia seguinte, mas quando lemos “estudar, planear e projetar” supomos que defende a solução. Isto não é um exagero nem é 'fake-news'. O normal seria um líder defender e assumir o que tem no programa. O resto, este tipo de reação, é um mistério...
“Um dia, à noite, tivemos uma reunião em que combinámos os contratos a prazo e no outro dia fomos confrontados na Concertação Social com uma medida nova que era o período experimental e ninguém nos tinha dito nada. Depois o Governo pediu desculpa, tinha-se esquecido”. Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, no debate com António Costa
17 valores no índice da noiva traída. O Bloco tem um dilema: como reagir aos ataques de Costa sem ser prejudicado? O líder socialista tem procurado atrair o BE para uma armadilha: provocar uma reação a quente às críticas como quando chamou partido de “mass media” ao Bloco, em contraponto com o elogio à confiabilidade do PCP. Catarina Martins tem evitado sempre o confronto direto nestas matérias por saber que isso a prejudica. Prefere as “propostas” e evitar “intrigas”.
Mas há maneira de fazer as coisas. No debate com António Costa, tentou de forma subtil dizer que o PS e o Governo não são confiáveis: combinam uma coisa e depois fazem outra, como quando chegaram a acordo na legislação laboral e depois foi tudo diferente com os patrões. Catarina acusou Costa de traição de forma velada: não diz, mas mostra e insinua - embora a subtileza do ataque obrigasse a legenda e tradução.
Na noite de que a coordenadora do Bloco falou no debate, a continuação da 'geringonça' chegou mesmo a estar em causa. E a bloquista podia ter acrescentado temas como as rendas da energia ou as PPP na Lei de Bases da Saúde. Mas os ataques nesta campanha são todos muito calculados. A esquerda ainda sonha que a 6 de outubro haja uma 'geringonça' 2.0 e isso não é para estragar com diatribes de campanha.
“Isso era ecologiazinha dos anos 80, doutor Rui Rio, estamos no século XXI” André Silva, porta-voz do PAN, no debate com Rui Rio
17 valores no índice de carnivorismo. André Silva é vegan à mesa, mas esta segunda-feira foi carnívoro na política. Depois de uma entrevista ao Expresso muito vegetarianamente simpática para António Costa - com todas as portas e janelas abertas para um entendimento - no debate com Rui Rio apareceu transfigurado: ao ataque, puxou o líder do PSD para o seu terreno, a proteção dos animais e a descarbonização da economia, e forçou Rio a dois erros, ao criticar uma lei que o próprio PSD aprovou sobre o abate de animais e ao levar o social-democrata a falhar o tiro na resposta às políticas sobre a vida ativa dos reformados.
A metáfora tem um autor. Há uns anos, Marcelo Rebelo de Sousa criticou o então Presidente Cavaco Silva por ser “herbívoro” devido a uma interpretação minimalista dos poderes presidenciais. Quanto a André Silva, não foi herbívoro perante Rui Rio. Depois de Marques Mendes o ter criticado, no domingo, por ser mal preparado, o líder do PAN tentou morder a carne e o osso do adversário, ao procurar demonstrar que a linguagem e a política ambiental do PSD estão desfasadas do atual momento político. Falou para o seu público alvo e nisso foi eficaz.
“Fundamentalista” ou não como Rio apontou, percebeu-se porque é que André Silva consegue conquistar um nicho de eleitorado. Só vence na política do século XXI quem percebe os tempos em que vive. Sobram por aí péssimos exemplos de novos vencedores, mas André Silva mordeu as canelas do adversário. Vamos ver como aparece ele na quarta-feira no debate com António Costa. Temos político?