O regresso do velho fantasma da privatização da Caixa
Numa entrevista desta segunda-feira ao “Eco”, Rui Rio terá deixado uma mensagem críptica que, segundo o jornal, terá sido: “sou favorável a que a CGD mantenha uma maioria pública de capital, mas estou aberto à abertura de critérios de gestão privados.” A coisa caiu no silêncio profundo que seria de esperar, dado que aparentemente não se refere a qualquer família em especial.
Lida com cuidado, a segunda parte da frase não tem qualquer significado: a CGD é gerida como qualquer banco, logo com os tais “critérios de gestão privados”, ou seja, concede crédito e escolhe operações financeiras segundo a regra da rentabilidade e da gestão de risco que faz parte do negócio bancário normal. Portanto, nada no seu regime de propriedade altera essa norma de gestão, para o melhor e para o pior. Então, o que importa é a ideia, essa também antiga, de uma “maioria pública da capital”, que é a forma mal amanhada de sugerir uma “minoria privada de capital”. Tudo mansinho, como aliás ocorreu no passado com as privatizações, nunca começaram pela declaração de uma vontade de alienação completa e, no entanto, foi sempre aí que terminou o processo.
Todas as privatizações e vendas de ativos na banca portuguesa ajudaram a destruir os centros de capital nacional, e levaram o BCP, o BPI e o Novo Banco para as mãos de interesses angolanos, catalães e norte-americanos
Quem lê estas linhas, gente avisada, bem se lembrará de que existe uma espécie de latência no PSD sobre a privatização da Caixa, com recaídas de quando em vez: na época mais recente, a proposta surgiu num livro de Passos Coelho, então ainda candidato à liderança do PSD, depois houve algum ensaio na preparação do programa do Governo, até que os outros bancos ou alguém acima deles se colocou no caminho. O facto é que os acordos com a troika não incluíram a CGD-banco na lista das privatizáveis, mas não pouparam a CGD-seguros, que representava um terço do mercado e a mais poderosa das seguradoras, a Fidelidade.
Houve depois um abanão com os dois processos de recapitalização, em 2012 e em 2016-17, obrigando mais uma vez o banco a ceder parte do seu negócio a concorrentes no estrangeiro, ou garantindo-lhes uma generosa renda por aplicações de capital. Que agora, em vésperas de eleições, venha Rio sugerir, sem chegar a propor, uma entrada de privados no capital da CGD, tudo como se fosse um simples ajustamento de carteira, pode ter mais que ver com a necessidade de disparar em todas as direções do que com um programa coerente.
Em todo o caso, coerência não tem nenhuma. Todas as privatizações e vendas de ativos na banca portuguesa ajudaram a destruir os centros de capital nacional, e levaram o BCP, o BPI e o Novo Banco para as mãos de interesses angolanos, catalães e norte-americanos, sendo nuns casos concorrentes diretos e noutros aventureiros avulsos. Ter a Caixa nas mãos do Estado é a única garantia de um sistema de crédito gerido em Portugal, no mínimo.
Bem sei que, no dia em que nos bater à porta a próxima vaga de austeridade, os credores exigirão parte da Caixa. Talvez devêssemos então olhar para este tipo estranho de família que, do PSD aos agentes financeiros, está tão interessada em ir banalizando a ideia de que lhe cabe ficar com uma parte do maior banco português. Água mole em pedra dura, esta velha ideia vem por vagas, testa o terreno, explora a desatenção, procura os elos fracos, vai tentando os dirigentes do PSD, cola-se aos liberais. O seu argumento é tremendo, revelador e evidente: o privado gere melhor a banca. Como se tem visto, não tem?