RICARDO COSTA

Como é que o passado da Caixa ainda nos espanta?

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Podemos ter em conta que os tempos eram outros, que não havia memória recente de uma crise financeira, que a palavra imparidade era pouco conhecida, que os incumprimentos eram relativamente raros, que a economia acabava sempre por crescer, que o euro garantia quase tudo e que os bancos sabiam resolver os seus problemas. Podemos e devemos ter tudo isto em conta para não descontextualizarmos em demasia o choque que existe ao olhar para a lista dos maiores incumprimentos da CGD. Mas mesmo como esses “remédios”, não há como evitar um sentimento que fica entre o espanto e a raiva.

O que ali vemos é uma ode à incompetência nacional, a um mundo em que poucos amparavam outros tantos, com os pés longe da terra e sem ter em conta o que se passava abaixo deles. Há naquela lista casos de polícia e de política, de favores mas também de “movimento perpétuo”, do género se sempre assim foi porque não continuar? Há outros que só podem ser brincadeiras. Há casos e casos que nunca passariam num simulacro de comité de crédito do primeiro ano da faculdade, mesmo antes da crise financeira de 2008.

Já nada nos devia espantar na ressaca da crise de 2008. Mas a lista de incumprimentos da CGD tem o dom de nos deixar de boca aberta. Não traz um nome desconhecido nem uma história de que não tivéssemos já ouvido falar, mas junta tudo numa lista que é talvez o melhor retrato do Portugal contemporâneo

Sempre fui (e sou) contra a privatização da Caixa Geral de Depósitos. Mas choca-me que o dinheiro do Estado tenha servido para isto. Serviu para aventuras pessoais, quimeras mitómanas, invenções de centros de decisão nacional, fabricações de gigantes sectoriais. Gente ou empresas que não tinham qualquer solidez. Ou seja, não são apenas casos de empresas muito endividadas ou com contas de exploração pressionadas, são empresas e pessoas que não tinham muito além do próprio crédito e que pouco ou nada entregaram em troca.

A auditoria da EY aos anos de brasa e escândalo da Caixa vai ser analisada por gestores, financeiros, políticos e talvez procuradores. Mas devia ser matéria de estudo de sociólogos e antropólogos. O que ali existia de mais grave era uma cultura empresarial, um comportamento coletivo sem razão de existir e que não servia ao Estado, nem ao banco nem a ninguém, a não ser quem ali aparecia a pedir.

Já nada nos devia espantar na ressaca da crise de 2008. Mas aquela lista, que já devia ser pública há muito tempo, tem o dom de nos deixar de boca aberta. Não traz um nome desconhecido nem uma história de que não tivéssemos já ouvido falar, mas junta tudo numa lista que é talvez o melhor retrato do Portugal contemporâneo.