Andamos nisto

Andamos nisto

Bernardo Ferrão

A demagogia sabe a quê?

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Na última edição do Expresso, Francisco Louçã acusou-me de “populismo puro” por ter escrito contra a aprovação no Parlamento de três novas vacinas sem prévia consulta nem autorização dos peritos. Na sua crítica – “o populismo sabe tão bem” –, o ex-líder do BE carregou na eloquência e até citou Shakespeare, mas a sua prosa confirma o que se tornou óbvio: a decisão dos bloquistas não foi unânime e internamente gerou incómodos – sobretudo depois das más reações. Agora, porque é a melhor defesa, é preciso atacar. Só falta mesmo saber se terá sido Louçã a mão atrás do arbusto.

A tese é simples: o Governo falhou “porque não apresentou uma proposta”. Mas os “comentadores seduzidos pelo populismo e técnicos ofendidos” até ajudaram o Executivo, que, apanhado de surpresa, se apoiou nas nossas “vozes zangadas” para minimizar os danos. Já o BE manteve-se firme no “respeito pelos doentes” e insistiu que não havia naquela decisão de se substituir as autoridades da Saúde qualquer precedente perigoso. Na SIC Notícias, chegou mesmo a defender que “os cientistas não tomam decisões políticas, nem tomam decisões sobre a gestão do SNS, essa é competência do Governo, que responde no Parlamento”.

Portanto, para Louçã os cientistas não se devem meter na política, mas a política já pode tomar decisões que são e deveriam continuar a ser do foro exclusivo dos cientistas. Só é curioso que Louçã diga isto mas tenha de recorrer ao Infarmed e à Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) para robustecer a sua narrativa. No seu comentário televisivo, o patrono do BE disse, cheio de certezas, que a “SPP recomenda que as três vacinas sejam generalizadas e incluídas no Plano Nacional de Vacinação (PNV)” e ironiza: “É uma consulta técnica bastante razoável”. Isto depois de ter defendido uma vez mais que os deputados se tinham “limitado a antecipar uma decisão que a Comissão Técnica não estava em condições de decidir ou pelo menos que arrastava há muito tempo por uma questão orçamental”. Mas, desculpem, não é o Bloco de Esquerda que também viabiliza esses mesmos Orçamentos? O que devemos ler nesta intervenção, de que a partir de agora a Assembleia da República deve ignorar ou mesmo atropelar as entidades técnicas ou científicas que não vão de encontro às pretensões dos deputados?

Para um partido que esqueceu o protesto e que se deixou seduzir pelo poder, o desafio do BE para 2019 não é fácil. Como ocupar mais espaço à esquerda quando apoiou um Governo de “direita” com quem quer agora partilhar o poder. Louçã já devia saber que o desprezo pelos que “não pensam como nós” não é o melhor caminho

Na semana passada, na mesma edição do Expresso havia um artigo particularmente interessante. Recordo o título: “Novas vacinas só com o aval da DGS”. Leu? (está aqui). Nesse artigo, a tal SPP garante, através do seu coordenador para a comissão de vacinas, que a “instituição nunca tomou partido” e que “não tem conhecimento de ter sido consultado pelos deputados antes de avançarem com a medida”. Especialistas em Direito Administrativo também contactados pelo jornal “consideram que a norma não é válida”, que o legislador “desrespeitou os procedimentos” e que a medida “carece de requisitos técnico-científicos que apenas as entidades competentes podem formular”.

Impõe-se por isso a pergunta: porquê agora? Como aqui escrevi há duas semanas, tudo isto cheira a eleições e o BE certamente já sonhava com os cartazes nas ruas de Portugal. Louçã até pareceu ensaiar alguns slogans no artigo do Expresso: “O respeito pelos doentes vale mais do que o parecer do Ministério das Finanças” ou “as crianças continuam a merecer a melhor proteção de saúde”. Totalmente de acordo, só não percebo porque é que o Bloco optou por um caminho que até me parece contraditório e muito perigoso.

Para um partido que esqueceu o protesto e que se deixou seduzir pelo poder, o desafio do BE para 2019 não é fácil. Como ocupar mais espaço à esquerda quando apoiou um Governo de “direita” com quem quer agora partilhar o poder. Louçã já devia saber que o desprezo pelos que “não pensam como nós” não é o melhor caminho. Quando faltaram à reunião da troika, o país castigou-os. O que aconteceu nesta votação foi uma repetição dessa falta de sentido institucional, criando um precedente gravíssimo. O Parlamento tem de dar o exemplo sob pena de deixar crescer não só os argumentos dos antivacinas como os interesses das farmacêuticas junto dos deputados. Isto é o contrário de populismo. É Saúde Pública e responsabilidade.