Quatro perplexidades sobre o show judicial da semana
Qualquer pessoa que tenha acompanhado o que escrevo sabe o que penso sobre o último mandato de Bruno de Carvalho. E sabe o que penso das suas responsabilidades, mesmo que não criminais, em relação ao que se passou em Alcochete. E sabe o que penso sobre o que ele disse depois de Alcochete. E sabe o que penso das claques e do seu comportamento, agravado pelo facto de a Juventude Leonina ter publicado esta semana, na sua página oficial, um cartaz de solidariedade com alguém que é suspeito de participação num ato criminoso de enorme gravidade (“Musta, tens um exército a teu lado”, pode ler-se na página de Facebook da claque).
No que toca ao que o Sporting tem de fazer, espero que finalize rapidamente o processo disciplinar contra Bruno de Carvalho e ponha na ordem quem julga que pertencer a uma claque de um clube lhe garante impunidade legal e moral. Sobre tudo isto escrevi na segunda-feira. E sobre a Justiça, disse na altura: “À hora a que escrevo não é clara a razão da detenção, a um domingo, de alguém que se tinha apresentado voluntariamente. Nem a razão para se terem feito as buscas à casa da Juventude Leonina e a detenção do seu líder minutos antes do início de um jogo do Sporting.” Com a libertação de Bruno de Carvalho e Nuno Mendes (“Mustafá”), já se podem dizer algumas coisas sobre o espetáculo a que assistimos no último fim de semana. E quase nenhuma deixa a Justiça bem vista.
Já nem vou perder tempo com as trapalhadas que nos revelam como está a funcionar a Justiça – desde um juiz que se esquece de avisar os advogados do pedido de especial complexidade de investigação a uma greve há muito marcada que atrasa o anúncio das medidas de coação, passando pela incapacidade de localizar Jorge Jesus, que toda a gente sabe onde está. Fico-me apenas por quatro perplexidades mais imediatas.
Primeira: porque se escolheu fazer uma busca na “casinha” da Juventude Leonina e a detenção do seu líder durante um jogo do Sporting, contribuindo para acicatar paixões clubísticas em vez de favorecer a serenidade deste processo? Parece que o Ministério Público continua a ter uma atração insuportável pelos holofotes. Que corresponde, como não podia deixar de ser, ao striptease, quase em direto, de toda a investigação. Estou à espera das transmissões áudio (ou mesmo vídeo) do interrogatório a Bruno de Carvalho.
Porque se escolheu fazer uma busca e detenção durante um jogo do Sporting? O que esperava a GNR encontrar na sede da claque e na casa do seu líder quase meio ano depois dos acontecimentos? Porque foram Bruno de Carvalho e Nuno Mendes detidos a um domingo, para serem ouvidos quatro dias depois? Faz algum sentido a acusação de terrorismo?
Segunda: o que esperava a GNR encontrar, na sede da claque e na casa do seu líder, quase meio ano depois dos acontecimentos? Imagino que a descoberta de 20 gramas de cocaína e algum haxixe justificam tamanho aparato policial e mediático, mas duvido seriamente que contribua para descobrir o que aconteceu em Alcochete. Nem os membros das claques são tão burros que guardem alguma prova do seu envolvimento no caso durante tanto tempo.
Terceira: porque foram Bruno de Carvalho e Nuno Mendes detidos a um domingo, quando não poderiam ser ouvidos pelo tribunal? Não havendo qualquer risco de fuga – Bruno de Carvalho já se tinha apresentado antes para depor e, como se viu, a medida de coação foi a menos gravosa de todas –, para que raio se mantêm detidos dois inocentes (é isso que são até prova em contrário) durante quatro dias? Para alimentar o espetáculo mediático?
Quarta: à luz de tudo o que sabemos sobre o caso, faz algum sentido a acusação de terrorismo? Neste assunto tenho de ser mais benevolente com a Justiça do que com o legislador. Como a lei inclui no terrorismo tudo o que corresponda a um grupo organizado para intimidar certas pessoas ou grupos de pessoas através de crimes contra a integridade física e contra a liberdade, cabe lá imensa coisa. Incluindo o que obviamente não é terrorismo. Mas o Ministério Público não deve esticar a corda para conseguir bons títulos e nenhuma condenação. O bom senso também é preciso na aplicação da lei.
Muita gente não compreende a exigência do Estado de Direito e confunde-a com cumplicidade com o crime. Ou só a compreende quando lhe dá jeito. Defendi a destituição de Bruno de Carvalho depois de Alcochete e também por causa de Alcochete. Considero que o perfil do líder da Juventude Leonina corresponde a quase tudo o que está errado nas claques e no futebol. E acho que, a serem culpados, conspiraram contra o meu clube, provocando-lhe um enorme prejuízo moral e financeiro. Espero, aliás, que o Sporting se constitua como assistente neste processo. Como fez no processo e-toupeira, mas aqui com redobradas razões. Mas nada me fará abandonar a exigência de uma Justiça eficaz, que respeite os direitos liberdade e garantias dos cidadãos e que trabalhe menos para os holofotes e mais para o cumprimento da lei. Já cansa tanto espetáculo.