Opinião

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Pedro Santos Guerreiro

Cultura de Graça

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Um mês de trabalho depois, a ministra da Cultura já precisa de férias dos jornais portugueses. Podia ser enfado, mas é desrespeito pela própria função. Podia ser uma gaffe, mas é uma estupidez. Da ministra. Da Cultura. Da pasta da comunicação social. Daqui a nada está a pedir “deixem-me trabalhar”.

Não há como usar ironias, uma frase bruta precisa de posições brutas. “Uma coisa ótima de estar em Guadalajara é que não vejo jornais portugueses”, diz Graça Fonseca, com um sorriso nos lábios de quem não sabe que cargo desempenha ou, talvez seja melhor dizer, do cargo que ocupa. Habituada a política de gabinete, Graça Fonseca deve estar a adorar passear pelo México como atriz convidada, rodeada de uma corte de literatos, afinal é uma experiência. A experiência de uma ministra à experiência.

À experiência, sim, porque Graça Fonseca nunca tinha tocado estas bandas, o que não é eliminatório. O seu perfil assegurava robustez política, mas em meia de dúzia de semanas já magnetizou duas polémicas. O seu perfil sugeria a humildade de quem iria ouvir, mas compraz-se por nem sequer ler. O seu perfil criava o benefício da dúvida, que tem aniquilado com o malefício da falta de dúvidas.

Eliminatório é o desdém fútil. Eliminatório é cultivar a não leitura de jornais, porque o regozijo com essa sua “coisa ótima” é uma sugestão a leitores para que deixem de o ser. Se governar fosse só gerir um orçamento, Graça Fonseca seria uma casa decimal, mas é a ação e o discurso político que podem fazer de um ministro um número inteiro. Com piadas como esta, a ministra parece concorrer furiosamente para ser um zero, um zero à esquerda.

Os jornais são contrapoder ou não são jornais. Fazem perguntas, têm memória, duvidam, cobram promessas, cruzam factos e têm a mania de publicar coisas diferentes das que o poder gostaria. No país ideal de Graça Fonseca não havia notícias, havia comunicados. Hoje, por exemplo, talvez lhe fosse aprazível que todos os jornais tivessem como manchete “Governo cumpre três anos de sucessos”, sobre uma fotografia de António Costa em Bruxelas com a legenda “Estadistas europeus vergam Reino Unido às misérias da saída da UE” e uma chamada para “Graça Fonseca leva cultura portuguesa aos píncaros no México”. Notícias sobre o mau serviço da CP, zero. Do favor que a Santa Casa esteve para fazer há um ano injetando 170 milhões no Montepio, nem uma breve. De Marcelo, nada nunca. Da estrada de Borba, da greve dos estivadores ou das negociações com os professores, coisa nenhuma.

É mesmo preciso dizer a Graça Fonseca que só os políticos autocráticos ou ignorantes dissuadem interessadamente a leitura de jornais? É mesmo preciso dizer à ministra da Cultura o que é cultura?

É por isso que há políticos que gostariam de escolher jornalistas, de condicionar perguntas e que repetem frases sobre decadências e dependências dos jornais, fogo tão fácil de atear nas redes sociais. A quem mais convirá que os jornais enfraqueçam do que ao poder? Quem beneficiará mais de criar má reputação? Querem mesmo um país sem jornalistas exigentes e sem leitores inteligentes? É mesmo preciso explicar Trump? É mesmo preciso dizer a Graça Fonseca que só os políticos autocráticos ou ignorantes dissuadem interessadamente a leitura de jornais? É mesmo preciso dizer à ministra da Cultura o que é cultura?

Talvez Graça Fonseca tenha acordado feliz naquela manhã em Guadalajara, nimbada de orgulho por representar Portugal como país convidado de honra na Feira Internacional do Livro. Talvez tenha aberto jornais mexicanos e lido artigos semelhantes sobre Portugal: que não, não é apenas o país de Ronaldo, de Saramago e de Pessoa, que há “escritores como António Lobo Antunes, Nuno Júdice, José Luís Peixoto y Gonzalo M. Tavares”. Talvez tenha pensado no poema de Pessoa e sentido o prazer de não cumprir um dever, ter um jornal para ler e não o fazer. Talvez tenha à tarde cruzado as mãos com a poeta uruguaia Ida Vitale, que aos 95 anos recebeu o grande prémio na Feira, que lê jornais e se diz pasmada com a coluna de emigrantes que chega ao México a caminho dos Estados Unidos, onde na Casa Branca está “o monstro ruivo”, como lhe chama.

Talvez pudesse ter sido só isto, uma resposta enfastiada à pergunta anticlímax de uma jornalista sobre touradas. Mas não é só isto. É uma ministra da Cultura possivelmente deslumbrada com o seu novo cartão de crédito cultural e provavelmente feliz por estar longe de Portugal e dos seus jornais.

No fundo, ser ministra da Cultura é “uma coisa ótima”. Graça Fonseca ainda está fora de Portugal, aliás, pelo que este texto não vai ler. Ou, como diz a ministra, não vai ver. Está certo. Como escreveu um heterónimo do poeta, “eu sou do tamanho do que vejo”.