É fácil seres de esquerda quando estás bem na vida
Vale a pena continuar na entrevista notável de Herman José a Marco Alves e Diogo Barreto, jornalistas da “Sábado”. É que Herman explica ali como ninguém o mecanismo de voto nos Bolsonaros. Aliás, a atitude do humorista português faz lembrar a humildade que Anthony Bourdain revelou nos últimos anos de vida: é necessário compreender este voto; compreender não é aceitar, é perceber – um esforço fundamental que continua a ter poucos adeptos.
Quando vives na realidade onde a tua filha pode ser assaltada, ou pior, várias vezes, o discurso de Bolsonaro deixa de ser odioso, porque estás marcado a ferro quente pelo medo. Medo, esse, que não chega lá acima aos grãs-finos de passeata
Herman conhece bem a sociedade brasileira, ou melhor, conhece um certo ambiente elitista das grandes cidades brasileiras. E é por isso que o seu comentário sobre o momento brasileiro é tão certeiro. Comentário, esse, que pode ser resumido da seguinte forma: é muito fácil seres de esquerda quando vives num palácio nas alturas protegido por guardas-armas e quando o teu automóvel é um helicóptero; quando vives nesta bolha de privilégio, o discurso de Bolsonaro é odioso. E claro que é. Mas, quando vives na realidade onde a tua filha pode ser assaltada, ou pior, várias vezes, o discurso de Bolsonaro deixa de ser odioso, porque estás marcado a ferro quente pelo medo. Medo, esse, que não chega lá acima aos grãs-finos de passeata, como dizia Nelson Rodrigues.
No atual contexto histórico, é de facto muito fácil ser de esquerda quando se vive bem, quando se vive num sector da sociedade privilegiada e protegida em relação ao pior da natureza humana, a pobreza e a violência. Em 2019, a verdade é esta: a esquerda é cada vez mais associada aos privilegiados, às pessoas que por sorte, nascimento ou mérito não têm de se confrontar com o pior das sociedades.