Paraísos Perdidos

Paraísos Perdidos

Bruno Vieira Amaral

Enterrar os mortos

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Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras no Expresso Diário

“Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem, tão-pouco, eles têm jamais recompensa, mas a sua memória ficou entregue ao esquecimento.” Eclesiastes 9:5

Em Bergamo, cidade do norte de Itália, realizam-se dois funerais a cada hora. Segundo o dono da maior funerária da cidade, a média de funerais por mês, que era de 120, passou para 600. O crematório funciona sem interrupções, mas já não dá resposta às necessidades. Camiões militares têm transportado os caixões para cidades vizinhas para que os mortos possam ser cremados e os mesmos camiões trazem as cinzas de volta para que sejam entregues às famílias e estas possam honrar os seus mortos.

Muitas famílias foram impedidas de acompanhar os seus entes queridos nos últimos momentos. Veem-nos entrar para os cuidados intensivos e só voltam a vê-los já mortos. Os funcionários das funerárias, sem mãos a medir, não conseguem (nalguns casos nem podem) preparar convenientemente os cadáveres, o que tem obrigado à solução da cremação que, numa cultura ainda profundamente religiosa como a italiana, agrava o sofrimento dos sobreviventes. Porém, mesmo aqueles que não são religiosos sofrem não só com as perdas, mas com a transformação dos rituais associados à morte.

Já se sabe que a morte é uma coisa que acontece aos vivos. Os rituais fúnebres – missas, cortejos, enterros, reuniões de família após o funeral – de nada adiantam ao morto que, como diz o Eclesiastes, não sabe coisa nenhuma, mas ajudam os vivos na transição de um mundo com a presença de um ser humano para um novo mundo definido pela ausência desse ser humano. Através dos rituais, humaniza-se a morte, limam-se as suas arestas vivas, mitiga-se o sentimento de injustiça, traz-se para o domínio humano o que é do domínio do absurdo, do irremediável, do incompreensível. O tratamento dos nossos mortos marca a nossa passagem da natureza para a cultura.

O filósofo Hans-Georg Gadamer considerava o enterro dos mortos provavelmente o “fenómeno fundamental de nos tornarmos humanos. O enterro não consiste numa rápida ocultação dos mortos, na eliminação célere da impressão chocante provocada pelo súbito apagamento de alguém num sono eterno e irreversível. Pelo contrário, por um gasto notável de esforço e sacrifício humanos, procura-se uma permanência com os mortos, na verdade um forte apego dos mortos com os vivos. […] Não é um assunto religioso ou uma mera transposição da religião para hábitos seculares, costumes, ou algo semelhante. Antes, é uma questão da constituição fundamental do ser humano da qual deriva o sentido específico da prática. Trata-se aqui de uma conduta de vida que se emancipou da ordem da natureza.”

Nos últimos dias, em Portugal e noutros países que enfrentam a pandemia, tem-se ouvido falar do abrandamento imposto pelo vírus às nossas vidas. De repente, dizem-nos, fomos obrigados a parar, a entrar numa espécie de recolhimento (que também terá as suas conotações religiosas) e a repensar as nossas prioridades. Isto é apenas uma parte da verdade e que talvez só se aplique àqueles que (ainda) não têm de lidar diretamente com a doença e com a morte. Para os médicos, enfermeiros e muitas outras profissões o tempo não se suspendeu, antes entrou numa aceleração vertiginosa que torna ainda mais dramáticas as decisões de vida e morte tomadas a cada minuto.

Nos países mais atingidos, não há tempo. Não há tempo a perder, não há tempo de descanso, não há tempo para acomodar a morte no curso normal da vida porque esse curso foi interrompido. Se uma das coisas que nos define enquanto humanos é esse “gasto notável de esforço e sacrifício” na dignificação dos nossos mortos é fácil imaginar os tremendos custos psicológicos para as famílias que, nos últimos dias, perderam alguém. O sentimento de culpa e impotência só pode ser ligeiramente mitigado pela certeza das necessidades logísticas e sanitárias. Culturalmente, não estamos preparados para este tratamento industrial e militar dos mortos, por muito que a razão nos diga que, nas circunstâncias excecionais em que vivemos, não há nada a fazer. Exige-se eficácia e rapidez quando a morte dos nossos pede tempo, lentidão e todo um conjunto de rituais lentos e solenes, como o velar do corpo, os cortejos que obrigam até o mais apressado dos automobilistas, quanto mais não seja por superstição, a travar a marcha, os sermões religiosos ou seculares, os gestos, como o do primeiro punhado de terra atirado para o caixão, o dispersar vagaroso da multidão dormente.

Em A Peste, livro abundante e justificadamente citado nos últimos tempos, Camus escreveu também sobre os enterros nessa cidade feliz assolada pela morte: os doentes morriam longe da família; sendo proibido velar os corpos, os que morriam ao fim da tarde passavam a noite sozinhos e os que morriam de dia eram enterrados de imediato. As famílias que não tinham tido contacto com o morto e que, por isso, não estavam de quarentena, eram chamadas ao hospital onde encontravam um caixão já fechado. Fazia-se o mais importante, que era assinar os papéis, e, metido o corpo num carro funerário e os familiares num táxi, seguiam “a toda a velocidade” para o cemitério, onde eram recebidos por um padre para uma cerimónia rápida. Um quarto de hora depois, a família voltava a casa: “Assim, tudo se passava verdadeiramente com o máximo de rapidez e o mínimo de riscos. E, sem dúvida, ao princípio, pelo menos, é evidente que o sentimento natural das famílias se ofendia. Porém, em tempo de peste, não é possível ter em conta semelhantes considerações: tinha-se sacrificado tudo à eficácia.”

Em Itália, além dos casamentos e missas, foram também proibidos os funerais. Aliás, já houve dois padres processados por realizarem funerais nos últimos dias. Em declarações ao Guardian, o sobrinho de uma das vítimas confessou que o mais devastador é a impossibilidade de se despedirem dos familiares e de lhes dar o que, em tempos normais, seria um enterro condigno. Em alturas de catástrofe, há quem recorde as palavras pragmáticas atribuídas ao Marquês de Pombal no seguimento do grande terramoto de 1755: “enterrar os mortos e cuidar dos vivos.” Acontece que as duas coisas estão ligadas a níveis mais profundos do que o nosso déspota iluminado poderia supor. Enterrar os mortos, e a forma como o fazemos, é, e será sempre, em vários sentidos, cuidar dos vivos.