França e a tempestade perfeita
Uma contestação inorgânica a um poder sem autoridade política e condicionado por burocratas sem consciência democrática. São estes os três elementos para a tempestade perfeita em França.
Não dependendo de organizações com passado, tradição, agenda política e códigos de conduta conhecidos, os “coletes amarelos” não tinham autoridade para definir uma agenda de reivindicações. Fizeram tantas como aquelas que existam na rua, por mais contraditórias que fossem. O imposto sobre o gasóleo era a única coisa claríssima. De resto, as coisas iam do limite constitucional de 25% nos impostos a um aumento das prestações sociais em 40%, contratação de mais funcionários públicos e aumento do orçamento de vários ministérios. De mais Estado na economia a menos ingerência do Estado no ensino e na saúde. Tudo e o seu oposto porque um movimento inorgânico não podia fazer escolhas.
Estou a dizer que se ignorem estes protestos? Pelo contrário, eles devem ser levados muito a sério. Mas não são um partido, um sindicato ou um movimento filiado numa tradição histórica, com direção, programa e um discurso coerente. Apesar do entusiasmo que o espírito das redes sociais empresta a estas explosões, movimentos sem cúpula e sem programa nascem e definham no seu próprio caos. Porque não podem ter uma vitória final, já que não têm quem lhes ponha fim. E porque, quando se arrastam, acabam por ser instrumentalizados por alguém. Mesmo assim, mudam a história.
As exigências destes movimentos não podem ser levadas à letra, com o risco de a governação ser tão caótica como quem a contesta. Mas o desconforto que estes movimentos revelam importa. Ele é um sintoma. Do medo, da frustração, da desigualdade, da alienação democrática de um povo que sente que já não é dono do seu destino e se revolta sem rumo nem liderança contra todos os poderes, contra tudo o que existe deste tempo rápido que não entende e onde parece não caber.
Está a acontecer qualquer coisa e nem os seus principais protagonistas percebem bem o que seja. A única forma disto se tornar inteligível é ter atores inteligíveis. A primeira questão é quem conseguirá liderar a revolta difusa. A segunda é como se resgata a autoridade política de quem governa. E a terceira é como devolver capacidade política às democracias nacionais na Europa
Está a acontecer qualquer coisa e ninguém, nem os seus principais protagonistas, percebe bem o que seja. Apenas percebem que está a acontecer e que é indispensável que aconteça. A única forma disto se tornar inteligível é ter atores inteligíveis. E isso só existe quando o inorgânico se organiza. A primeira questão é quem conseguirá liderar esta revolta difusa.
No campo do poder a questão é semelhante. A confusão entre autoridade e autoritarismo é de sempre. As imagens de dezenas de miúdos alinhados, de joelhos e mãos na nuca, no meio do pátio do liceu de Saint-Exupéry, nos arredores de Paris, são o retrato grotesco do autoritarismo de um poder que perdeu toda a autoridade política. Poucos dias depois, Macron metia a soberba no saco e cedia em toda a linha. Para além de ter desistido do aumento do imposto sobre o gasóleo, prometeu um aumento de 100 euros para o salário mínimo, um corte na contribuição social dos pensionistas com reformas inferiores a 2000 euros e um apelo ao pagamento de prémios anuais aos trabalhadores livre de impostos.
As suas cedências, contraditórias com tudo o que a andou a defender até agora, não correspondem a uma tentativa de compreender e integrar os protestos. Tenta apenas salvar a pele, acabando por se fragilizar ainda mais aos olhos do povo. O medo dos cidadãos também resulta da profunda convicção de que quem os lidera não saber o que anda a fazer. A segunda questão é como se resgata a autoridade política de quem governa.
Perante uma crise que pode entregar a França a Le Pen, a primeira reação da Comissão Europeia foi a do burocrata em negação: “Cuidado com o défice”. Compreende-se: se a França não cumprir, o braço de ferro com Itália está perdido. E como a França não é a Grécia, ninguém a pode obrigar a cumprir. E como a Itália não é Portugal, ela não cumprirá. Os discursos dos políticos que dependem do voto e dos burocratas que nem perdem cinco minutos a pensar nele tornaram-se incompatíveis. Uns sabem que os orçamentos também servem para evitar crises políticas, outros pensam apenas no equilíbrio de uma moeda que nasceu para viver em crise. Ao criarmos uma moeda que não depende da democracia retirámos aos governos a elasticidade para aguentar os embates sociais e políticos. Com esta rigidez, as democracias estão condenadas a soçobrar perante um descontentamento a que não podem dar respostas coerentes. A terceira questão é como devolver capacidade política às democracias nacionais na Europa. E não nos venham falar do gambozino a que chamam “democracia europeia”.
Devolver aos governos a autoridade de governar e ao povo a autoridade de decidir quem realmente o governa, afastando burocratas não eleitos do comando da política. Isto não chega, porque o problema transcende a Europa. Mas é um primeiro passo. E é bom que caminhemos depressa. Como avisou o primeiro vice-diretor-geral do FMI, há nuvens negras no céu. Uma nova crise no estado em que estamos terá efeitos políticos bem mais devastadores do que a última.