RICARDO COSTA

O Parlamento descobriu as fake news na farinha Amparo?

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O Parlamento tentou discutir esta quarta-feira o tema das fake news. Tentou, porque, na prática, não conseguiu grande coisa. O resultado não causa qualquer surpresa porque uma das evidências de qualquer discussão sobre fake news é a quase impossibilidade de se chegar a acordo sobre o próprio conceito de fake news: tanto serve para caracterizar blogues políticos que tiveram fama há dez anos como anúncios governamentais, versões partidárias de estatísticas oficiais ou frases propositadamente descontextualizadas, notícias erradas de jornais ou promessas que não se cumpriram.

Servindo para isto tudo, os debates políticos sobre fake news correm o risco de não servir para quase nada, a começar pela mais simples das razões: as fake news são uma coisa muito diferente do que a esmagadora maioria dos políticos pensa. Para ser mais preciso, as fake news contemporâneas são uma coisa muito diferente, porque dependem em absoluto da propagação através de algoritmos desenhados para micro-targetting comercial.

A novidade das atuais fake news está no facto de terem nascido para cavalgarem algoritmos que fazem dinheiro. As “fábricas” que iniciaram as ondas de fake news - na sua maioria estabelecidas em localidades muito pobres de países do Leste europeu, onde os jovens escrevem bem em inglês - tinham um objetivo muito simples: fazer dinheiro

Comparar as atuais fake news com o caso Dreyfuss, os panfletos espetados numa estátua na Roma Antiga, as várias ondas de antissemitismo, as campanhas contra Sá Carneiro, as mentiras sobre Mário Soares ou tantos outros casos com que atualmente vivemos é um erro. Esse tipo de boatos e manipulações sempre existiu. Como tal, continuam a existir e de forma ainda mais preocupante, porque se propagam de forma muito rápida: os boatos via WhatsApp que provocaram 10 mortos na Índia, as mentiras igualmente mortais via Facebook na campanha na Nigéria ou a gravíssima utilização do Facebook na limpeza étnica de Myanmar vão claramente no sentido do que a História nos mostrou várias vezes, sempre com os mesmos objetivos e sempre com consequências dramáticas. O mais grave nestes casos não é a novidade, que não existe, mas a vergonhosa posição de neutralidade e de falsa impotência que as plataformas tecnológicas assumem...

A novidade das atuais fake news não está nestes casos, tantas vezes citados. Está, isso sim, no facto de terem nascido para cavalgarem algoritmos que fazem dinheiro. As “fábricas” que iniciaram as ondas de fake news - na sua maioria estabelecidas em localidades muito pobres de países do Leste europeu, onde os jovens escrevem bem em inglês - tinham um objetivo muito simples: fazer dinheiro. A notícia de que o Papa apoiava Trump era profundamente estúpida e absurda, apenas porque seguia a linha de muitas outras igualmente absurdas e estúpidas, e de imenso sucesso comercial. Mas, por mais que usemos este exemplo, não foi este tipo de fake news estilo “Jornal do Incrível” que deu a vitória a Trump. Quem se der ao trabalho de ver os vários documentários ou artigos sobre Brad Parscale - o estratégia digital da campanha de Trump - percebe o que lhe deu a vitória.

O algoritmo do Facebook é permanentemente atualizado, mas beneficia sempre os artigos que suscitam mais partilhas, comentários e interações. Assim, tudo o que for polarizado e extremado será sempre mais partilhado, porque a sua progressão geométrica está assegurada. E uma progressão geométrica tem a mesma curva que a de uma epidemia em saúde pública

A notícia sobre o Papa até pode ter sido das mais partilhadas, sobretudo pelas pessoas mais idosas - outro erro comum nos dirigentes políticos é o de acharem que são os jovens quem mais partilha notícias fake, o que não é verdade -, mas apenas serviu para que uns reforçassem as suas convicções e outros se rissem, conforme os targets em que se distribuíam nas redes, sobretudo no Facebook. O algoritmo desta rede é permanentemente atualizado, mas beneficia sempre os artigos que suscitam mais partilhas, comentários e interações. Assim, tudo o que for polarizado e extremado será sempre mais partilhado, porque a sua progressão geométrica está assegurada. E uma progressão geométrica tem a mesma curva que a de uma epidemia em saúde pública.

O que foi totalmente novo na campanha de Trump e no referendo do Brexit foi a utilização profissional de serviços do Facebook e de empresas associadas para atingir com artigos e anúncios específicos (alguns deles com mil versões diferentes, nem que fosse um pormenor cromático ou uma pequena expressão), com base numa quantidade inimaginável de dados, nomeadamente comportamentais. Apesar do algoritmo do Facebook não ser nessa altura uma óbvia ferramenta de inteligência artificial, já tinha tantos dados recolhidos que facilmente entregava (a quem pagava, claro) modelos preditivos de comportamento, bem como perfis de eleitores com um detalhe inimaginável e literalmente individual, incluindo características psicológicas, momentos chave para comunicação, etc.

O truque que o Facebook, o Google ou o YouTube partilham - de que são apenas plataformas neutrais onde outros publicam conteúdos - é completamente falso, porque quem entrega a anunciantes um absoluto detalhe de audiência nunca pode ter um comportamento neutral. É esse erro original - o de permitir que as plataformas finjam não ser publishers - que continua a abrir os portões aos bárbaros...

Se algum deputado tiver HBO na sua box televisiva, aconselho a ver “Brexit - The Uncivil War”, um filme do Channel 4, com Benedict Cumberbatch a fazer de Dominic Cummings. A fazer de quem?, dirão muitos deputados. Pois bem, Cummings e Parscale - que veio há dois anos à Websummit explicar como fez Trump ganhar as eleições - são mais relevantes para este debate do que quase todos os políticos de primeira linha. Porque foram os primeiros a perceber que o truque que o Facebook, o Google ou o YouTube partilham - de que são apenas plataformas neutrais onde outros publicam conteúdos - é completamente falso, porque quem entrega a anunciantes um absoluto detalhe de audiência nunca pode ter um comportamento neutral. É esse erro original - o de permitir que as plataformas finjam não ser publishers - que continua a abrir os portões aos bárbaros ...

Algum deputado consegue ver um vídeo de Fórmula 1 nessas plataformas? Não, porque os riscos de processo judicial são tão elevados que os que fingem não ser publishers retiram automaticamente os vídeos das suas plataformas. Mas então porque será que os mesmos deputados conseguem ver um vídeo de um imã a apelar a que se degolem infiéis ou de um maluquinho qualquer a discursar contra as vacinas? A explicação é simples: como não há risco de processos judiciais, as plataformas voltam à lengalenga de que não são publishers e de que não têm responsabilidades sobre o que se publica.

Ao fim de anos e anos a contribuírem para um brutal retrocesso civilizacional, as plataformas decidiram ser publishers nos temas das vacinas e deixarem de beneficiar as loucuras que os movimentos apoiam. Sim, os verdadeiros responsáveis do que está acontecer com várias doenças na Europa e nos EUA com as vacinas são muito fáceis de indicar

O caso das vacinas é exemplar. Só agora, depois de enorme pressão - em que vários anunciantes relevantes foram parar a páginas antivacinas sem o quererem - é que a Google começou a admitir o erro. Ou seja, ao fim de anos e anos a contribuírem para um brutal retrocesso civilizacional, as plataformas decidiram ser publishers nos temas das vacinas e deixarem de beneficiar as loucuras que os movimentos apoiam. Sim, os verdadeiros responsáveis do que está acontecer com várias doenças na Europa e nos EUA com as vacinas são muito fáceis de indicar.

Para os deputados verem o que é um campo de batalha de fake news, vejam o que se passa na Ucrânia e nos Balcãs ou o que se passou no referendo para a mudança de nome na Macedónia. Quando falam dos blogues de Sócrates, de promessas não cumpridas, de truques da oposição ou do governo, estão a falar de palha. Sim, de palha, que até pode servir para entreter um debate mas que não tem nada a ver com a realidade, nem com o que se pode passar de grave nestas eleições europeias. Os Abrantes do Sócrates não passavam da porta de nenhum site pró-russo nos Balcãs...

As próximas europeias são um momento chave para as democracias ocidentais. Em Bruxelas há um sentimento de pânico sobre o que pode ser esta campanha eleitoral. Em Lisboa, nem por isso, porque a questão é (ou parece ser) muito menos relevante

Vejam, por exemplo, o mais recente anúncio de Mark Zuckerberg, sobre a mudança que o seu conglomerado - Facebook, Whatsapp e Intagram - vai fazer no sentido de se dedicar muito mais à comunicação direta e a outros serviços (nomeadamente bancários e de busca), em vez de servir tanto como mural de publicação de notícias e sentimentos. O Facebook está com algum medo da regulação e das multas que podem chegar (a das autoridades americanas pode ser mesmo brutal...), mas está sobretudo a copiar o caminho que o Wechat fez. O que preocupa Zuckerberg é ver a Tencent a crescer mais que ele e o TikTok a ser a App de vídeos rápidos mais descarregada no mundo, não é o renascimento dos nacionalismos ou dos extremismos.

As próximas europeias são, de facto, um momento chave para as democracias ocidentais. Em Bruxelas há um sentimento de pânico sobre o que pode ser esta campanha eleitoral. Em Lisboa, nem por isso, porque a questão é (ou parece ser) muito menos relevante. Mas, para início de conversa, talvez seja bom começar a não misturar fake news com outras coisas e perceber a sua natureza e modelos de propagação. Se olharem para isso, talvez consigam perceber a dimensão do que têm pela frente e que vai muito além de discussões típicas da política do dia a dia.

Nota: o título deste artigo é propositadamente exagerado. Não sendo fake, porque metafórico, é fake no sentido literal, e não tendo qualquer objetivo político de denegrir os deputados pode bem beneficiar do algoritmo do Facebook, notoriamente antipolítica.