Depoimento
O oficial do exército que ganha €8,7 e pediu a bênção à mãe para desertar da Venezuela

Um oficial do Exército venezuelano conta na primeira pessoa porque decidiu, com “a bênção da mãe e de Deus”, abandonar as Forças Armadas bolivarianas e o país, que serviu durante 21 anos
Reportagem Gustavo Basso (texto e foto), enviado a Cúcuta (fronteira Colômbia-Vnezuela)
“No dia 23 de fevereiro, véspera da tentativa de entrada da ajuda humanitária organizada pelo Presidente interino, Juan Guaidó, decidi que abandonaria o exército e o meu país. Pedi autorização à minha mãe, que me disse que eu deveria fazer o que fosse melhor para mim e para o povo venezuelano. E com a sua bênção, e a de Deus, atravessei para a Colômbia, deixando para trás o meu país, para onde só poderei voltar quando Maduro sair e voltar a haver liberdade.”
A explicação é do oficial venezuelano que foi o primeiro a cruzar a fronteira entre San Antonio Táchira, na Venezuela, e Cúcuta, na Colômbia, depois de ter desertado. O militar identificou-se ao Expresso, mas prefere que o seu nome seja omitido e a sua imagem não permita identificá-lo, por temer represálias contra a família. No esconderijo onde está alojado desde sábado com outros 44 desertores venezuelanos, em Cúcuta, conta porque fez parte do Exército do regime de Nicolás Maduro e o que o levou a abandonar tudo.
“Entrei para a escola militar em 1998, aos 16 anos. Cinco anos depois tornei-me oficial da aeronáutica da Venezuela, então já sob a presidência de Hugo Chávez. Posso dizer que os 16 anos que passei como profissional no exército, que são uma vida, foram de pura tensão. Tínhamos de estar sempre atentos, alerta, e tudo para defender uma pessoa que nunca respeitou os valores militares, como é o caso de Nicolás Maduro.
Nós, oficiais do exército, somos dos profissionais mais bem pagos na Venezuela - e ganhamos 40.000 bolívares, o que equivale a 10 dólares [€8,7]. Não dá para nada
Nos primeiros anos de serviço, éramos reconhecidos. Nos quartéis havia fruta, carne, legumes. Recebíamos treino no estrangeiro, com estadias pagas de até um ano, para desenvolvimento técnico. Com o tempo estas coisas foram-se perdendo. Por exemplo, nos últimos anos já não tem havido carne nos quartéis todos os dias. A comida limitava-se a arroz, feijão, farinha. Carne de frango ou de vaca só muito esporadicamente. Isto sem falar na queda nos salários.
Se no começo dos anos 2000 podíamos viver bem com o que ganhávamos, hoje, com a desvalorização da moeda e a inflação, não se compra nada. Nós, oficiais do exército, somos dos profissionais mais bem pagos na Venezuela - e ganhamos 40.000 bolívares, o que vale 8,7 euros. Não dá para nada.
Há já cerca de um ano e meio que eu vinha pensando em desertar e vir para a Colômbia, mas nunca tinha levado a ideia avante. Até à altura em que não aguentei mais ver as filas para tudo: para comida, para o hospital, para os combustíveis
Esse tipo de desvalorização vai minando o ânimo dos militares, mas todos, ou pelo menos 90%, têm medo de reclamar ou de se manifestar. Medo de que sejam presos, ou que as suas famílias sejam vítimas de represálias. A presença de membros do Exército de Libertação Nacional (ELN, guerrilha colombiana com ligações a narcotráfico) junto das Forças Armadas venezuelanas é outro fator de perturbação. Eu, como membro da aeronáutica, nunca tive qualquer contacto direto com eles, mas os oficiais que comandam tropas de fronteira têm relações diretas com a guerrilha.
Há já cerca de um ano e meio que eu vinha pensando em desertar e vir para a Colômbia, mas nunca tinha levado a ideia avante. Até à altura em que não aguentei mais ver as filas para tudo: para comida, para o hospital, para os combustíveis. Como o meu pai, uma pessoa idosa, que esteve quatro dias numa fila para abastecer o carro, simplesmente porque a gasolina, ainda que barata, não chega à população.
No dia 23 de fevereiro liguei à minha mãe para conversar com ela sobre a minha decisão. Foi ela quem apoiou. Disse-me que, se fosse para contribuir para uma mudança na Venezuela, fosse avante com isso
Eu tinha condições financeiras para continuar a viver na Venezuela, mas chegou uma altura em que senti que era necessário fazer algo — pelos meus familiares, que permanecem no país e não têm possibilidade de sair, pelos milhões de emigrantes que deixaram a Venezuela nos últimos anos, pelo bem do meu povo.
No dia 23 de fevereiro liguei à minha mãe para conversar com ela sobre a minha decisão. Foi ela quem apoiou. Disse-me que, se fosse para contribuir para uma mudança na Venezuela, fosse avante com isso.
Com a autorização dela e a benção de Deus, na manhã do dia 24 de fevereiro, antes da tentativa de entrega dos camiões carregados de ajuda humanitária e dos confrontos entre manifestantes e soldados bolivarianas, entreguei-me às autoridades da Colômbia, que me levaram aos serviços de imigração e à presença do Presidente interino Juan Guaidó, a quem jurei lealdade.
Foi uma ação pensada, tomada para tentar motivar outros a fazerem o mesmo, porque somos nós, os militares opositores e o povo, que vamos mudar as coisas na Venezuela
Não foi um ato de desespero, como acontece com muitos dos miúdos que desertaram depois de mim e estão assustados, escondidos em várias partes da cidade. Foi uma ação pensada, tomada para tentar motivar outros a fazerem o mesmo, porque somos nós, os militares opositores e o povo, que vamos mudar as coisas na Venezuela.
Sei que há uma consequência: por ter aparecido de mais, sei que hoje a minha cabeça está a prémio do outro lado da fronteira. Mas não temo pela minha família. Sei que há muita gente da comunidade que a apoia e defende.
Maduro está fragilizado. O seu bloqueio à ajuda humanitária e a repressão a jovens desarmados não foram uma demonstração de força, mas sim de medo. É o que ele tem vindo a sentir nos últimos dias, apesar de nós, os que desertámos, não estarmos a pensar em pensamos em organizarmo-nos para formar parte da resistência contra o governo dele.
Acredito que as Forças Armadas estão aos poucos a reagir a este Governo e que, juntos, seremos a mudança e o desenvolvimento. Mas, por enquanto, o sentimento mais forte é, ainda, o medo
Não consigo imaginar-me a fazer parte desta luta que tem estado por estes dias nas pontes [entre a Venezuelana e a Colômbia]. Uma resistência assim é inútil. São pedras e bombas caseiras contra armas de verdade. É necessário algo mais contundente, e isso só poderá vir de fora. Tanto nós como os militares que estão dentro da Venezuela somos constantemente vigiados. Acredito que as Forças Armadas estão aos poucos a reagir a este Governo e que, juntos, seremos a mudança e o desenvolvimento. Mas, por enquanto, o sentimento mais forte é, ainda, o medo.”