Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

O Bloco não voltará à juventude em que foi feliz

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Foto José Caria

Um texto em que Daniel Oliveira percorre a infância e juventude do Bloco de Esquerda, que esta quinta-feira faz 20 anos. O que o primeiro partido que rompeu de forma consistente com o domínio dos quatro fundadores da democracia mudou na política portuguesa, tornando as fronteiras eleitorais do PS mais porosas. Quais as suas fraquezas estruturais. E o que já não pode, depois da “geringonça”, andar para trás.

Nos primeiros anos, quando se percebeu que não era um fenómeno passageiro, o Bloco de Esquerda conseguiu quatro vitórias: romper o domínio dos quatro partidos fundadores da democracia que apenas tinha sido episodicamente abalado pelo PRD; transportar a extrema-esquerda moribunda e balcanizada para outro espaço político; tornar a fronteira do PS porosa, obrigando a preocupar-se com o seu flanco esquerdo; e dar aos chamados temas pós-materiais, ligados aos direitos individuais, a dignidade institucional que ainda não tinham tido em Portugal.

É importante dizer que o sucesso do Bloco resulta de algo que lhe é prévio: um espaço político-cultural, entre a rigidez ideológica do PCP e o centrismo ultrapragmático do PS, que não tinha representação partidária. Esse espaço até é anterior ao 25 de Abril. Foi muito evidente na candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo ou até, mais cedo, na de Otelo Saraiva de Carvalho (que, com a percentagem que teve, ultrapassou em muito o campo da extrema-esquerda). E foi crescendo à medida que o peso social do PCP se foi erodindo. E é por representar o que já existia que sobreviveu. Por isso e porque, tendo resultado da fusão de pequenos partidos, tinha uma estrutura mínima e quadros políticos com alguma experiência. Duas lições importantes para quem está sempre a imaginar o nascimento de “blocos” à direita.

A infância

Quando Fernando Rosas escreveu, no “Público”, o texto que levaria Luís Fazenda, líder de uma UDP agonizante, a contactá-lo para que o ajudasse a fazer pontes com outras pequenas organizações de esquerda, apenas tornava público um sentimento que ficava especialmente evidente com a derrota no referendo do aborto: que o PS e o PCP já não conseguiam mobilizar uma nova faixa da população, mais jovem, urbana e cosmopolita, que sem ter nada a ver com a velha extrema-esquerda poderia ser representada por uma nova força política.

No início, não era clara a forma que a coisa teria. Começou por se explorar, em negociações, uma coligação entre os três partidos (UDP, PSR e Política XXI), com distribuição prévia de deputados. Mas rapidamente se percebeu que isso não mudava nada. Apenas remeteria para um passado que já não existia

A quase eleição de Francisco Louçã pelo PSR, em 1991, e a mobilização para a campanha pela despenalização do aborto tinham dado sinais de que havia qualquer coisa que queria despontar mas ainda não sabia como. Mesmo que as alianças entre a UDP e o PSR, nas legislativas de 1983, e entre o PSR e a Política XXI, nas autárquicas de Lisboa e Porto, em 1997, tenham corrido especialmente mal, não sobrava outro lugar onde a coisa pudesse nascer. Por causa dessas más experiências, Louçã ainda resistiu à ideia, muito no início. Mas rapidamente percebeu que era mesmo por ali que se tinha de seguir e o projeto acabou por começar a fazer o seu caminho, com contactos formais entre UDP, PSR, Política XXI e, à medida que foi ganhando forma, muitos independentes. Tudo bastante concentrado nas quatro personalidades que foram o rosto do partido nos primeiros dez anos: Francisco Louçã, Luís Fazenda, Miguel Portas e Fernando Rosas.

No início, não era clara a forma que a coisa teria. Começou por se explorar, em negociações, uma coligação entre os três partidos, com distribuição prévia de deputados. Mas rapidamente se percebeu que isso não mudava nada. Apenas remeteria para um passado que já não existia. Não permitiria representar esse espaço político que, se não se revia no PCP e no PS, também não tinha qualquer ligação às tradições que estas forças políticas traziam consigo. Para vencer as velhas e anacrónicas divergências entre trotsquistas, maoístas e pós-comunistas, foram importantes duas coisas: permitir que essas organizações se preservassem enquanto “museus identitários” e dar aos seus principais rostos mais relevância do que às organizações que tinham dirigido até então. Superar essas organizações sem as matar. Um trabalho que ficou a meio.

Sendo verdade que o comportamento de António Guterres em todo o processo que leva ao referendo da interrupção voluntária da gravidez foi determinante para o passo que estas organizações deram, isso é apenas a fagulha. A floresta seca foi o bloqueio à esquerda, resultado do fosso profundo que a guerra fundadora da nossa democracia, entre o PS e o PCP, tinha cavado.

Lembro-me como a primeira guerra do Bloco no Parlamento, ao exigir sentar-se à esquerda do PCP, me pareceu também anacrónica. Não era isso que preocupava os jovens eleitores do Bloco, como o tempo veio a demonstrar

A maioria dos comentadores da altura, lembro-me bem, não percebeu quase nada do que se estava a passar. Não percebeu que uma nova geração mais aberta ao mundo e à Europa, que não tinha vivido o PREC, estava disponível para outro tipo de discurso político. Li textos perentórios sobre a inviabilidade de trotsquistas e maoístas se entenderem, muitos deles escritos por ex-trotsquistas ou ex-maoistas que, apesar da sua caminhada para o centro ou para a direita, ainda tinham as suas cabeças num período que já era uma história incompreensível para muitos eleitores. Não percebiam que o BE não vinha reagrupar a extrema-esquerda, apenas pegara nesse património de militância para ocupar um espaço que há muito esperava ser ocupado. Lembro-me como a primeira guerra do Bloco no Parlamento, ao exigir sentar-se à esquerda do PCP, me pareceu também anacrónica. Não era isso que preocupava os jovens eleitores do Bloco, como o tempo veio a demonstrar.

A importância das chamadas “causas fraturantes” não foi apenas a de permitir que o BE encontrasse uma identidade que lhe facilitava esta aliança e um nicho de mercado eleitoral. Isso é a consequência de uma outra necessidade: a de superar, de uma forma indireta, a tradição do socialismo real. Mesmo para aqueles que, entre os marxistas, sempre o criticaram. Os temas da liberdade individual afastavam o BE de um PCP limitado por uma base social de apoio conservadora e de um PS limitado pelo seu temor de perder maiorias. Mas, acima de tudo, permitia fazer nascer uma esquerda radical vinculada a uma agenda que tentava casar o socialismo com a liberdade. Essa foi, na realidade, a maior novidade do Bloco, na altura.

É também por isso que, ao contrário do que os observadores pouco atentos costumam escrever e dizer, o BE sempre se distanciou, mais do que os restantes partidos, de todas as ditaduras, de esquerda, direita ou convenientes: de Angola à China (no que ficou sempre sozinho), de Cuba à Rússia. E até manteve discursos bastante cuidadosos com experiências como a Venezuela. Também ao contrário do que rezam as lendas, o BE começou por ter um discurso fortemente europeísta. O “europeísmo de esquerda”, assim o chamava Miguel Portas. E isso só mudou porque a UE de que hoje falamos é bem diferente da que discutíamos naquela altura.

A adolescência

Até 2005, quando ultrapassa a barreira dos 5%, o Bloco é um partido urbano, jovem e de classe média. À medida que o PS, primeiro, e o PCP, depois, vão absorvendo parte da sua agenda pós-materialista, o BE teve a inteligência de fazer a transição que lhe faltava: a de ter um programa político completo – o Bloco não apresentava sequer programas às eleições legislativas, só propostas e medidas – e dedicar-se aos temas tradicionais da esquerda, ligados às questões sociais e económicas. As suas causas originais não só tinham passado a fazer parte do mainstream da esquerda, como não corriam risco de deixarem de ser associadas à identidade do BE. Eram património seu garantido. Morreria se tivesse ficado por aí.

O que se pode dizer que é o Bloco ficou mais parecido com o país. E isso é inevitável para um partido que cresce. O Bloco é hoje, com 10% dos votos, um partido mais popular, mais nacional, mais intersocial e menos tribal do que era quando tinha 2,4%. Tem de responder a mais gente

Desse ponto de vista, e ao contrário do que se escreve, o Bloco não se aburguesou ou moderou desde a sua fundação. Pelo contrário, os temas que entretanto abraçou são mais marcados pela sua origem ideológica do que a sua agenda inicial, muito ligada a temas de “costumes”. O que se pode dizer que é o Bloco ficou mais parecido com o país. E isso é inevitável para um partido que cresce. O Bloco é hoje, com 10% dos votos, um partido mais popular, mais nacional, mais intersocial e menos tribal do que era quando tinha 2,4%. Tem de responder a mais gente, pensar em mais gente e conciliar maior diversidade de interesses. Se a isso chamam institucionalização de um partido, eu acho que é apenas sinal de maior implantação política.

Se a entrada e manutenção do Bloco no cenário político teve um enorme impacto simbólico – o mais importante no xadrez partidário desde a fundação da democracia –, é a sua chegada aos temas tradicionais da esquerda e o seu crescimento que têm um impacto estrutural no sistema de partidos. Pela primeira vez na história, a fronteira esquerda do PS ganhou porosidade eleitoral. O facto do PS ter de se preocupar, em permanência e não apenas em momentos de crise profunda, com o seu lado esquerdo condicionou o comportamento do PS e, com isso, o conjunto da esquerda. Isto muda todo o cenário político. Apesar de o PCP ter tido um papel mais relevante para o nascimento da “geringonça”, num olhar mais abrangente ela é incompreensível sem a entrada do BE no cenário partidário. Os socialistas deixaram de poder estar apenas preocupados com o eleitorado flutuante, que vota apenas a pensar na situação económica e social do momento, e tiveram de responder a uma nova pressão.

A isto junta-se um outro fenómeno: apesar da origem dos seus partidos fundadores, o BE tinha muito menos anticorpos políticos do que o PCP. Nem lhe faltaram eleitores vindos da direita, que encontraram ali uma forma de protesto. Para o mal e para o bem, o Bloco de Esquerda é o partido com o eleitorado mais elástico do país. Pode ir de resultados muito baixos a enormes votações em poucos meses. Isso cria-lhe problemas – é mais sensível a pequenos escândalos, o que faz com que os seus opositores tentem explorar cada vez mais essa sua fragilidade –, mas também lhe dá bastante poder. Sobretudo junto do PS, que só por isso detesta o Bloco. Muito mais do que o PCP, a quem atribui a qualidade de ser leal e de confiança – ou seja, de não representar um grande risco eleitoral para os socialistas.

As fraquezas

O Bloco manteve, da fundação até hoje, quatro problemas: a sua subalternidade em relação ao PCP, a sua relação complexada com o poder, o seu moralismo retórico e a sua pequenez orgânica.

Lembro-me de ter visto militantes da UDP especialmente emocionados no dia em que o BE ultrapassou pela primeira vez os comunistas. Foi nas eleições europeias de 2009. Estranhei, porque os três eleitos – Miguel Portas, Marisa Matias e Rui Tavares – não seriam os que mais agradariam a esta corrente do Bloco. Uma dirigente explicou-me: finalmente, ao fim destes anos todos, ultrapassámo-los. “Os anos todos” não eram os 10 que tinham passado desde a fundação do partido, eram os 35 que tinham passado desde o 25 de Abril. Havia ali uma vingança histórica, apesar de estarmos perante entidades políticas só vagamente aparentadas.

A relação difícil do Bloco com o exercício do poder resulta da sua matriz mais ou menos libertária, que vive mal com a ideia de ter oposição em vez de estar com a oposição

Este sentimento é de tal forma forte que o BE, mesmo quando está à frente do PCP, não consegue deixar de olhar para o “retrovisor” esquerdo, com medo de ser ultrapassado em radicalidade. Como na polémica inicial em que se determinou onde se sentaria no hemiciclo. Mesmo quando isso é irracional e contrário ao que é o sentimento dos seus eleitores, claramente mais moderados do que os do PCP. Diga-se, em abono da verdade, que o PCP também tem uma obsessão pelo BE, a quem não perdoa ter-lhe tirado o monopólio da representação da “verdadeira” esquerda. Tão forte que essa é a única razão para não ter havido um acordo conjunto para a “geringonça”.

A relação difícil do Bloco com o exercício do poder resulta da sua matriz mais ou menos libertária, que vive mal com a ideia de ter oposição em vez de estar com a oposição. Durante anos houve até uma indicação para os seus eleitos locais não aceitarem pelouros nas juntas de freguesia. E a verdade é que as poucas experiências de poder não deixaram saudades ao Bloco. Esquecendo Salvaterra de Magos, que era da presidente da Câmara e não do partido, e o Funchal, onde toda a realidade é diferente, foram apenas duas e ambas em Lisboa: José Sá Fernandes e Ricardo Robles (que continua através de um novo vereador). Sá Fernandes acabou por cortar com o BE e cair nos braços de António Costa e Ricardo Robles foi obrigado a demitir-se de funções por causa de um caso extrapolítica. E os dois casos resumem todos os temores do Bloco: a traição e o fim da pureza moral. Ambas inevitáveis quando se tem poder.

O Bloco foi quase sempre aquilo a que chamei um “partido megafone”. De protesto mas sem povo, de slogans mas sem programa. Isso teve de mudar com a “geringonça”, mesmo que o Bloco, tal como o PCP, tenha preferido continuar a ter uma lista de reivindicações em vez de um programa de Governo à esquerda

A experiência da “geringonça” é, desse ponto de vista, um passo em frente. Uma situação apesar de tudo confortável: o Bloco não exerce o poder, mas tem, pela primeira vez, uma forte influência em muitas decisões de Governo. Mesmo que isso não implique ter oposição e até lhe permita continuar a parecer oposição, o BE teve de gerir, com sensatez, a manutenção de uma maioria política. Por enquanto, na companhia dos comunistas, o que torna tudo mais fácil. Mas longe vão os tempos em que o Bloco apresentava moções de censura sem saber ao certo que efeito elas poderiam ter.

Quando se diz que o Bloco é hoje mais responsável, costuma ser com um sorriso, como se se tivesse vendido. Eu acho que só pode ser um elogio. Os partidos servem para mudar a vida das pessoas e não há nada que exija mais responsabilidade do que isso. Mas o BE ainda está muitíssimo longe de viver bem com esta ideia.

Com simplismo político, diz-se que o Bloco era um partido de protesto e já não é. O CDS era um partido de poder e agora é de protesto. Essa é a diferença de estar a exercer o poder de alguma forma ou estar arredado dele. O problema é outro. O Bloco nunca teve dimensão para ser um partido de massas, capaz de mobilizar a rua. Também nunca teve a massa crítica para ser um partido de poder, capaz de construir um programa de Governo. E foi, quase sempre, aquilo a que chamei um partido “megafone”. De protesto mas sem povo, de slogans mas sem programa. Isso teve de mudar com a “geringonça”, mesmo que o Bloco, tal como o PCP, tenha preferido continuar a ter uma lista de reivindicações em vez de um programa de Governo à esquerda.

Quanto ao moralismo do discurso bloquista, ele esteve sempre bastante associado ao seu privilégio: o de não se sujar no exercício do poder, nem sequer autárquico. O moralismo de que falo não é ter exigência ética, é optar por discursos morais em vez de discursos políticos. Falar mal dos “especuladores” em vez de se concentrar em políticas públicas que limitem o impacto da especulação. Por essa facilidade retórica, pagou um preço caro com Ricardo Robles. É possível que tenha aprendido a lição. Não que deva deixar de querer combater os efeitos catastróficos da especulação imobiliária nas cidades, mas espera-se que desista do caminho fácil de moralizar um problema que é antes de mais político.

O BE, que era conhecido por ter excelentes grupos parlamentares, é uma sombra do que foi. Isto apesar do partido ter crescido e de ter, fora do hemiciclo, uma quantidade assinalável de bons quadros

Por fim, a pequenez do partido. O Bloco não deverá chegar – muito longe disso – aos dez mil militantes ativos. Suspeito que esteja a metade. Tem, na realidade, a dimensão de algumas concelhias do PS. É muito mais pequeno do que os partidos com dimensão eleitoral semelhante à sua (CDS e PCP). Isso resulta de ter nascido num tempo de menor apelo à militância partidária e de não ocupar lugares no aparelho de Estado. Mas não se pode dizer que tenha feito qualquer esforço para mudar isto. Pelo contrário, parece fazer tudo para que isso não mude. Por uma razão: as correntes internas do Bloco, que hoje são pouco relevantes do ponto de vista ideológico e programático, são determinantes na distribuição de poder interno e na construção de listas. E não têm qualquer interesse em mudar o status quo. Qualquer crescimento abrupto do partido, que fizesse a sua militância aproximar-se um pouco mais da sua realidade eleitoral, acabaria com estes poderes, que não têm qualquer implantação social e política fora do partido.

Esta pequenez cria vários problemas. Primeiro, uma enorme dependência do aparelho mediático, por falta de implantação social. Segundo, uma enorme divergência entre as características da massa militante e da massa eleitoral. O eleitor do Bloco é muitíssimo mais moderado e reformista do que o militante. Até há estudos que dizem que em alguns pontos é mais liberal do que o eleitor médio do PS. Terceiro, a falta de militantes tira ao BE antenas na sociedade (mesmo de forma distorcida, o militante partidário recolhe informação que transmite à cúpula). Quando decidiu não reunir com a troika, por exemplo, havia uma total incompreensão por parte de quase todos os dirigentes quanto ao sentimento de medo, e não de revolta, da esmagadora maioria dos portugueses. Tivesse mais militantes e eles teriam feito chegar à direção esse pulsar do país, incluindo o dos seus eleitores. Por fim, esta pequenez facilita uma má política de quadros. O Bloco, que era conhecido por ter excelentes grupos parlamentares, é uma sombra do que foi. Isto apesar do partido ter crescido e de ter, fora do hemiciclo, uma quantidade assinalável de bons quadros.

A vida adulta

O Bloco já foi dado como morto e como ressuscitado, como inviável e como incontornável, como um fenómeno que dependia de Louçã e como uma vitória de Catarina que fez esquecer Louçã. No dia em que faz 20 anos, a única coisa certa é que, depois da “geringonça”, não poderá voltar à infância e à adolescência em que foi feliz. Não pode voltar a ser um partido de resistência, que o tornaria redundante com um PCP que tem o dever de defender uma tradição histórica e que não espera conquistar espaço político para lá do que já é seu (e que espero que continue a ser). Também nunca será os “Verdes” alemães, porque essa não é a sua cultura e a nossa história. Não lhe cabe ser um PCP moderno, sem sindicatos nem militantes, nem um CDS do PS, apenas candidato a dama de companhia. Se quer ser relevante, terá de ser uma outra coisa, bem mais determinante do que qualquer uma destas. Porque, ao contrário dos quatro fundadores da democracia portuguesa, o Bloco não pode depender da inércia eleitoral – e mesmo esses devem, como se vê por o que se passa na Europa, fiar-se cada vez menos nisso.

Se o Bloco é o partido eleitoralmente mais elástico da política portuguesa, também é, por essa razão, aquele que mais facilmente entra no mercado do PS e que mais facilmente é devorado por ele. Por isso, é o que mais depende do que o PS faça no futuro pós-Costa

Apesar de vir da extrema-esquerda e de ter ocupado um espaço que já existia, o Bloco de Esquerda estará, nos próximos tempos, muito determinado pelo que aconteça no Partido Socialista. Para simplificar, não é indiferente para o BE se, no futuro, o PS é dirigido por um Fernando Medina ou por um Pedro Nuno Santos (podem escolher outros exemplos que representem estes dois caminhos). Nem para a sua força eleitoral nem para o poder de influência política. Não é indiferente o que aconteça na Europa e a forma como os socialistas se relacionem com isso. Porque, se o Bloco é o partido eleitoralmente mais elástico da política portuguesa, também é, por essa razão, aquele que mais facilmente entra no mercado do PS e que mais facilmente é devorado por ele. Por isso, é o que mais depende do que o PS faça. Pode vencer essa dependência se não tiver medo de se assumir, para lá da mera retórica de propaganda, como projeto de poder, se deixar de querer competir com o PCP, se ganhar muitíssimo mais implantação social e se vencer os medos que o prendem à juventude. Essa já lá vai. O Bloco tem mesmo de querer ser Governo, mesmo sabendo que os limites da Europa aconselham a ficar eternamente de fora. Apesar do que diz, esse desejo ainda está muito longe de ser sincero.

Declaração de interesses sobejamente conhecida: fui fundador do Bloco de Esquerda, em 1999, e seu militante até 2013. Fui membro da sua Mesa Nacional e da sua Comissão Política até 2006, tendo assumido ao longo de todos esses anos várias responsabilidades no partido. Distante da sua vida interna e de qualquer tipo de ressentimento, não sou nem seu apoiante nem seu opositor. O meu olhar pretende ser tão distanciado quanto pode ser o de alguém que esteve tão profundamente envolvido nos primeiros 14 anos da existência de uma organização. É um olhar de fora de quem já esteve dentro. Apenas isso.