Linha do norte

A beleza das formas no olhar de Mies van der Rohe

Valdemar Cruz

Haus Lange é, com Haus Esters, uma das duas vivendas construídas por Mies em Krefeld, na Alemanha, em 1928 <span class="creditofoto">Foto Deutsche Zentrale für Tourismus e.V.</span>

Haus Lange é, com Haus Esters, uma das duas vivendas construídas por Mies em Krefeld, na Alemanha, em 1928 Foto Deutsche Zentrale für Tourismus e.V.

Há noventa anos, em outubro de 1928, um arquiteto com ideias arrojadas e enamorado de processos vanguardistas, mas pouco conhecido fora daqueles circuitos onde começava a ser posta em causa toda a estrutura ética e estética que sustentara a criação artística desde meados do século XIX até aquelas primeiras décadas do século XX, começava a construir duas residências numa pequena povoação chamada Krefeld, na alemã Renânia do Norte – Vestefália, a convite de dois grandes industriais têxteis.

Podia ser um completo e arriscado tiro no escuro, ou podia ser um passo mais na consolidação do que anos mais tarde vem a afirmar-se como toda uma nova linguagem, uma nova conceção, uma nova forma de entender e recriar os espaços público e privado.

Nove décadas depois, quando pela primeira vez o olhar repousa naquela espécie de sinfonia arquitetónica adornada pela singular beleza dos jardins que a rodeiam, há uma estranha sensação de incredulidade a acompanhar o modo como o todo construído e o todo resultante daquele cuidado e quase rendilhado trabalhar da natureza se revelam em todo o seu esplendor.

Passaram noventa anos e, no entanto, é como se aquelas paredes, aquelas imensas janelas panorâmicas, aquela delicada e quase terna integração dos edifícios na paisagem tivessem acabado de ali chegar.

De alguma forma, é como olhar o passado e perceber como, nesse passado já distante, alguém soube pensar um futuro que é ainda futuro no presente que vivemos.

As duas casas são agora galerias de arte <span class="creditofoto">Foto Deutsche Zentrale für Tourismus e.V.</span>

As duas casas são agora galerias de arte Foto Deutsche Zentrale für Tourismus e.V.

Ver e entrar naqueles edifícios compostos por cubos entrelaçados, com fachadas cuja ousadia para a época constituem ainda hoje uma celebração do bom gosto, faz-nos perceber como a genialidade, quando se manifesta, arrisca-se a conquistar a eternidade.

Conhecidas por Haus Lange e Haus Esters, aqueles dois edifícios, que começaram por ser vivendas unifamiliares, jamais teriam sido possíveis sem o arrojo modernista de Mies van der Rohe, bem como da coragem, iniciativa e conhecimento de Herman Lange, então um dos mais importantes colecionadores de arte da Alemanha que, com o seu íntimo amigo Josef Ester, dirigia uma indústria têxtil na área da seda.

Ambos serão responsáveis pela encomenda da que se torna a única unidade industrial concebida na Europa por Mies, quando lhe propõem desenhar umas novas instalações para a sua estrutura empresarial chamada, abreviadamente, Verseidag, também em Krefeld.

No verão de 1929 o essencial do processo construtivo das duas casas estava concluído e no início de 1930 estavam prontas a receber os seus novos ocupantes. Trata-se de um projeto contemporâneo do Pavilhão de Barcelona, uma das mais marcantes e célebres obras de Mies van der Rohe, ao ponto de a partir de 1932, o Pavilhão, aquelas duas casas e a Haus Tugendhat, em Brno, agora a segunda cidade da República Checa, terem passado a ser escolhidas para representar em Nova Iorque, na “Modern Architecture: International Exhibition of Modern Art”, o trabalho de um arquiteto de origens humildes, cuja carreira fora, ou estava a ser construída a pulso.

Mies van der Rohe foi o terceiro e último diretor da Bauhaus <span class="creditofoto">FOTO GETTYIMAGES</span>

Mies van der Rohe foi o terceiro e último diretor da Bauhaus FOTO GETTYIMAGES

Nascido em Aachen em 1886, recebeu o nome de Maria Ludwig Michael Mies. Só muito mais tarde, e aproveitando a ascensão social que lhe permitira um casamento rico, acrescenta o “van” e o “der” que, além do mais, lhe conferiam a aparência de uma ascendência holandesa. Assim constrói, para a posteridade, o nome que a história regista: Mies van der Rohe.

Com Le Corbusier, Walter Gropius, de quem não gostava particularmente, não obstante as deferências mútuas que foram tendo ao longo da vida, ao ponto de Gropius o ter convidado para ser o terceiro e último diretor da Bauhaus, aos quais se pode juntar Frank Lloyd Wright, são em geral olhados como os grandes pioneiros do movimento moderno na arquitetura.

A simples menção da Bauhaus justificaria, por si só, um longo artigo, tantas são as histórias e tamanha é a importância de uma das mais míticas escolas alguma vez criadas na Europa. Imaginada em 1919 por Walter Gropius, na sequência dos desastres da I Guerra Mundial e do desejo de, a partir da ruína material e humana, criar algo de verdadeiramente novo, a Bauhaus (literalmente casa de construção, mas Staatliches Bauhaus no seu nome completo), instalada em Weimar, transformou-se num polo por onde circulavam alguns dos principais criadores e artistas daquelas primeiras décadas do século. Chegou a ter como professores, entre outros, Paul Klee e Kandinsky.

Esta aventura no mundo das artes e das ideias não durou mais de 14 anos, até os nazis terem encerrado uma escola que, com o seu espírito democratizador e arrojo estético, simbolizava todo um mundo oposto ao império pretendido pelos nacional-socialistas de Hitler.

Há um episódio curioso, contado pelo próprio Mies muitos anos mais tarde, quando vivia já nos EUA. Na sua versão, a escola foi de facto cercada e fechada pelas SS em 1933, quando estava já em Berlim, depois de ter passado por Dachau e após se ter tornado insustentável a sua permanência em Weimar. Naquela altura, a Bauhaus era uma escola privada, cuja existência se devia apenas à carolice de Mies. Como não via razões para o fecho, andou meses a correr para o edifício das SS, na tentativa de ser recebido, para explicar a situação e pedir a reabertura da escola. Quando finalmente o pedido é atendido, convoca todos os professores e alunos e, em conjunto, decidem celebrar com champanhe uma decisão que, no fundo, já havia sido tomada há algum tempo. Escrevem às SS a agradecer, mas a escola vai permanecer fechada, porque assim o decidiram docentes e discentes.

Encomendadas por dois industriais têxteis, as duas vivendas são um exemplo de vanguarda arquitetónica <span class="creditofoto">FOTO GETTYIMAGES</span>

Encomendadas por dois industriais têxteis, as duas vivendas são um exemplo de vanguarda arquitetónica FOTO GETTYIMAGES

Parece uma eternidade, mas em 1933 haviam passado escassos cinco anos desde o início da construção de Haus Esters e Haus Lange. Depois, com o advento dos nazis, Mies inicia uma nova vida nos EUA. Para trás fica não apenas uma memória, como um testemunho arquitetónico crucial para entender o fluxo de ideias do século XX.

As duas casas, de momento fechadas para obras de modo a abrirem no próximo ano a tempo das celebrações dos 100 anos da Bauhaus, são agora centros de exposições. Uma iniciou essa atividade a partir dos anos de 1950, a outra a partir dos anos de 1980. Doadas pelas duas famílias à cidade, são elas próprias uma muito sensível manifestação artística, ao mesmo tempo que continuam a constituir um verdadeiro tratado de construção.

Mies dizia, em 1923, que “a forma não é o objetivo do nosso trabalho, mas apenas o resultado. A forma, por si só, não existe”. E, no entanto, é a forma, a expressividade dos volumes, o despojamento, a completa ausência de retórica que tanto fascínio derrama em quem chega e ali aconchega o olhar.