A condução é uma arma
O que pode ter levado o condutor do camião da Segunda Circular a entrar na via e a percorrer quase 3 kms em contramão? Que fatores podem explicar o seu comportamento errático? O psicólogo forense Mauro Paulino escreve sobre causas possíveis para situações de “desajustamentos psicológicos”
Este início de semana começou diferente de qualquer uma segunda-feira, sobretudo para os milhares de utilizadores da Segunda Circular, em Lisboa. Sem que nada o fizesse esperar, um camionista circulou em contramão nessa via, causando vários acidentes e motivando o encerramento da estrada por várias horas.
Para clarificar o sucedido e até com base nos testemunhos recolhidos no local, a PSP quis perceber se o motorista estava ou não a guiar sob influência de alguma substância e submeteu-o a testes de despiste de álcool e estupefacientes. Em conferência de imprensa, no Comando Metropolitano de Lisboa, a PSP confirmou que os testes deram negativo e, até ao momento, não foram apurados elementos que levem as autoridades a crer que o episódio seja um atentado terrorista ou que o motorista do camião tenha causado o acidente por motivações extremistas.
O que poderá ter sucedido? De que forma a Psicologia pode contribuir para o esclarecimento da situação, mas também para mitigar a possibilidade de novas ocorrências do género?
Por sua vez, em comunicado, a empresa Renascimento, para quem trabalha o condutor, avançou que o motorista em causa trabalha na empresa há 12 anos e que não registava qualquer incidente, tendo os exames médicos em dia e o registo criminal limpo.
Posto isto, o que poderá ter sucedido? Que fatores influenciam, no geral, a condução? De que forma a Psicologia pode contribuir para o esclarecimento da situação, mas também para mitigar a possibilidade de novas ocorrências do género?
É sabido que embora as características do veículo, do meio e as normas de circulação contribuam para uma boa condução, o fator humano é identificado como o elemento mais importante. Aliás, a maioria dos acidentes rodoviários é atribuída a erro humano. Razão pela qual os fatores intrínsecos e extrínsecos que afetam o comportamento do condutor têm sido alvo de variadíssimos estudos.
Os riscos que se revelam na condução são de certa forma o reflexo da situação em que a pessoa se encontra nas restantes áreas da sua vida e da forma como resolve os seus conflitos
Diz-nos a investigação sobre os aspetos psicossociológicos da condução que lhe estão inerentes sentimentos de afirmação pessoal e social que são geridos por cada um em conformidade com a sua personalidade. Assim, os riscos que se revelam na condução são de certa forma o reflexo da situação em que a pessoa se encontra nas restantes áreas da sua vida e da forma como resolve os seus conflitos.
Para a condução ser eficaz, o condutor deve possuir aptidões diversas (por exemplo, atenção, capacidades motoras) que lhe permitam determinar uma trajetória e velocidade adequadas às suas necessidades e de acordo com as condicionantes do tráfego, da via, das regras de circulação e da relação com os outros utilizadores da via.
A condução é, então, uma tarefa complexa e dinâmica, que envolve vários aspetos psicológicos que influenciam a condução e a atitude do motorista. No geral, estes incluem, a título exemplificativo, a capacidade de tomada de decisão e resposta ao inesperado, fadiga e sono, negligência, idade, consumos (tais como drogas e álcool), estado emocional (por exemplo acontecimentos stressantes, problemas pessoais), medicação, experiência de condução e familiaridade com o veículo e o ambiente (por exemplo, uma estrada demasiado conhecida pode dar lugar também a uma redução do estado de alerta).
Vários estudos apontam que a influência da fadiga no desempenho do condutor é idêntica à do álcool
Como se constata, estamos na presença de uma pluralidade de fatores que interferem na qualidade da condução, pois, tratando-se de uma atividade que requer uma elevada concentração em detalhes importantes e em respostas ajustadas às diversas situações, qualquer falha poderá traduzir-se numa situação de risco.
Destaque-se que a fadiga se caracteriza por uma diminuição das capacidades percetivas, cognitivas e motoras que influencia negativamente o desempenho de qualquer atividade. Está também ligada ao surgimento de uma das condições psicofísicas mais adversas que poderá ocorrer durante o processo de condução que é o sono. Sabe-se que os picos da fadiga e da sonolência surgem entre as 2 e as 6 horas da madrugada e à tarde entre as 14 e as 16 horas, quando o ritmo biológico induz o sono.
Vários estudos apontam que a influência da fadiga no desempenho do condutor é idêntica à do álcool. Por exemplo, se o condutor se encontrar privado do sono durante um período de 19 horas, a sua performance será equivalente à verificada em sujeitos com uma Taxa de Álcool no Sangue (TAS) de 0,50g/l, e que após 24 horas sem dormir é similar a uma TAS de 1g/l.
Um cidadão comum pode comportar-se de maneira inesperada por estar comprometida a sua capacidade de exercer um controlo consciente e seletivo sobre as suas condutas
Estão também documentadas situações de desajustamento psicológico perante determinadas condições clínicas (por exemplo, exaustão extrema, stresse intenso, depressão severa, surto psicótico). Tais hipóteses potenciam comportamentos imprevisíveis, particularmente a observadores externos sem formação na área da saúde mental, podendo um cidadão comum comportar-se de maneira inesperada por estar comprometida a sua capacidade de exercer um controlo consciente e seletivo sobre as suas condutas, as suas memórias e sensações.
Só uma investigação minuciosa sobre as circunstâncias que antecederam o evento (últimos dias e/ou semanas, relatos de terceiros, despiste de eventuais benefícios secundários, entre outros passos) e sustentada nos imprescindíveis contributos providenciados pela Psicologia, Psiquiatria e, eventualmente, por outra área médica, como a Neurologia, poderá clarificar com rigor o que terá sucedido com o motorista do camião na passada segunda-feira.
Tenha-se em linha de conta que, em termos legais, existe um regulamento da habilitação legal para conduzir no qual constam os requisitos físicos, mentais e psicológicos exigíveis aos condutores. De acordo com esse Decreto-Lei, as condições mínimas de aptidão psicológica sempre que exigidas devem ser comprovadas por certificado de avaliação psicológica. O exame psicológico destina-se, no caso, a avaliar as áreas percetivo-cognitiva, psicomotora e psicossocial relevantes para o exercício da condução ou suscetíveis de influenciar o seu desempenho, por se reconhecer, como se demonstrou, a sua extrema relevância.
Atenta às reais necessidades da sociedade, a Ordem dos Psicólogos Portugueses criou inclusive uma Comissão para o Projeto de Acreditação de Testes e Provas Psicológicas, no âmbito da Avaliação de Condutores, pois só com avaliações ajustadas às reais necessidades da segurança rodoviária e perfil do condutor, mas também com a monitorização regular das condições emocionais dos motoristas, se pode reduzir riscos, não fosse o veículo uma possível arma nas mãos de quem o utiliza.