Ciência

Tecnologia que mudou genes de bebés chineses “é usada em todos os centros de investigação” de Portugal

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Foto Reuters

A tecnologia de edição genética designada “CRISPR” é recente, pouco conhecida e por isso está a ser testada com prudência em laboratórios de todo o mundo, incluindo em Portugal, que nesse aspeto “não está atrás” de qualquer outro país. Foi esta tecnologia de edição de genoma que permitiu ao chinês He Jiankui alegadamente modificar os embriões de duas gémeas e que pode vir a ser usada no futuro para alterar o ADN de outros embriões.

Texto Helena Bento

Luís Pereira de Almeida, investigador principal do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e coordenador de uma equipa que se prepara para aplicar em pessoas às quais foi diagnosticada a Doença de Machado-Joseph várias ferramentas de edição genética, incluindo a CRISPR, diz ao Expresso que esta tecnologia não o assusta. “Só temos de garantir que o risco é mínimo e que não é utilizada para outros fins que não a eliminação de doenças consideradas graves.” E como é que se garante isso? “Educando as pessoas e criando um consenso alargado na população sobre como devem ser usadas estas tecnologias. Não se pode cair numa lógica de proibicionismo.”

<span class="creditofoto">Foto d.r.</span>

Foto d.r.

Quão usada é a tecnologia CRISPR em Portugal e com que fins?

Trata-se de uma tecnologia que é utilizada em todos os centros de investigação biomédica do país. Claro que há grupos que têm investido mais que outros, mas nós, por exemplo, no CNC, trabalhamos com as tecnologias de ‘gene editing’ [edição genética] e com as CRISPR há muitos anos. Aliás, desde 2012 que recorremos a estas tecnologias para tratar a Doença de Machado-Joseph (DMJ), que é rara, resulta de uma mutação e tem maior prevalência em determinadas regiões de Portugal, nomeadamente nos Açores. As pessoas que têm esta doença começam por manifestar dificuldades na marcha, em equilibrar-se e a dada altura perdem a capacidade de articular a voz. Ainda não há uma terapia eficaz para tratar esta doença, para modificar o seu progresso, apenas terapias que permitem tratar os sintomas. Assim, estamos a tentar remover a mutação do gene que está envolvido nesta doença. Temos usado as CRISPR para silenciar o gene e corrigir a mutação genética. Ainda só testámos isto em modelos animais mas temos a expectativa de vir a fazê-lo em doentes assim que possível.

E nos restantes laboratórios para que fins está a ser utilizada esta tecnologia?

Creio que está a ser usadas para quase tudo. A CRISPR permite modificar qualquer um dos nossos 23 mil genes que codificam proteínas e permite também modificar ou remover qualquer deles. Tornou-se, portanto, uma ferramenta muito útil para a generalidade da comunidade científica. Sempre que se quer saber o que faz um gene, silencia-se esse gene. Até há algum tempo, fazíamos isso recorrendo aos siRNAs, um mecanismo descoberto em 1998 que permite modificar o gene ao nível do RNA, mas agora fazêmo-lo sobretudo recorrendo à CRISPR, porque permite modificar o genoma ao nível do ADN. Tornou-se, de facto, uma ferramenta de utilização corrente nos laboratórios.

E em Portugal tem sido testada apenas em laboratório, certo?

Sim, em Portugal até agora só foi usada em modelos pré-clínicos, celulares e animais. Esta tecnologia insere-se no grupo mais vasto da Terapia Génica, que embora seja atualmente alvo de um grande número de ensaios clínicos noutros países, ainda foi pouco testada no nosso, em clínica, com doentes. Apenas no Porto houve um ensaio com vetores não-virais para tratar a doença dos pezinhos [nome por que é vulgarmente conhecida a polineuropatia amiloidótica familiar]. Ainda assim, não estamos atrasados em relação a qualquer outro país.

O uso das CRISPR em embriões em Portugal está completamente fora de questão?

Espero que esteja. Creio que ainda nada justifica o seu uso em embriões. Os riscos são demasiado elevados. Nesta fase, não é admissível nem seguro fazê-lo. Sou a favor da sua utilização em células somáticas (não transmissíveis à descendência), mas não em embriões. O risco não compensaria o potencial benefício.

Mas estando resolvida a questão dos riscos, ponderaria o seu uso em embriões?

É evidente que é um assunto discutível. Alterar o património genético humano é sempre muito controverso. É necessário ser um bocadinho cauteloso. Numa lógica de prevenção, talvez se justificasse o seu uso em embriões. Admito que, no futuro, se venha a alterar a linha germinativa em situações de doença muito grave. Daqui a uma década creio que já será suficientemente seguro recorrer às CRISPR para prevenir doenças. Haverá sempre riscos, é claro, mas vai acabar por acontecer. É só uma questão de tempo e de ter à disposição tecnologia suficientemente fiável.

Como investigador e cientista, é algo a que estaria aberto?

Se me pergunta se isto me assusta, a verdade é que não. Acho que é algo que será inevitável. Como lhe disse, isto vai acontecer, só temos de garantir que seja usada de forma totalmente segura ou quase totalmente segura e que não seja utilizada para outros fins que não a eliminação de doença considerada grave.

E como é que se garante isso?

Isso faz-se educando as pessoas e criando um consenso alargado na população sobre como devem ser usadas estas tecnologias. Não se pode cair numa lógica de proibicionismo. Há uns anos houve um referendo na Suíça para proibir a terapia genética e, felizmente, não passou - seria dramático para os doentes que já estão a beneficiar dos tratamentos baseados na terapia génica e que se prevê venham a ser muitos mais nos próximos anos. Eu estava lá na altura e achei que não seria a via a seguir e que não se justificava o receio que havia em relação à terapia genética. As pessoas reagiram de uma forma muito exagerada. Na verdade, a terapia genética já poderia ter sido usada a partir do final dos anos 90 e só não o foi porque as pessoas tiveram consciência dos riscos e não a utilizaram para modificar a linha germinativa (transmissível à descendência). Com as CRISPR será o mesmo, não creio que precisemos de outros cuidados. Não é preciso nada de muito diferente.

Considera mesmo que isso será suficiente?

Não sou proibicionista. Proibir algo normalmente tem efeitos perniciosos. Veja-se o caso da proibição das drogas, que em geral tem tido efeitos opostos aos desejados. Creio que desenvolver um consenso alargado é suficiente. Por outro lado, há mecanismos definidos para evitar que as CRISPR sejam utilizadas para fins indevidos, a começar desde logo pelo facto de que necessitamos da autorização das comissões éticas locais e nacionais de cada vez que fazemos um ensaio clínico.

Além de poder vir a ser utilizada para fins indevidos, para “melhorar a espécie”, quais os outros riscos associados a esta tecnologia?

As estratégias de terapia genética estão a ser usadas para tratar múltiplas doenças e têm produzido resultados extraordinários. Neste momento, há já medicamentos aprovados e a ser utilizados com resultados extraordinários para tratar doenças como a Amaurose Congénita de Leber, que causa cegueira, a leucemia linfoblástica aguda ou a atrofia muscular espinhal. O que acontece é que, de entre todas estas tecnologias de terapia genética, a CRISPR é mais recente e a menos testada. Já é usada para tratar doenças mas tem sido sobretudo utilizada em modelos animais. De tal modo que foi proposta uma moratória a nível internacional no sentido de não se usar esta tecnologia em embriões.

O que se teme exatamente?

Basicamente os que as CRISPR fazem é cortar o ADN de forma precisa numa determinada região que nós selecionamos. As nossas células vão depois reparar esse corte que ocorre nas duas cadeias, ligando os topos das cadeias de DNA que foram cortados. No entanto, este método de ligação é muito pouco preciso, e o que acaba por acontecer é que são introduzidos ou retirados alguns nucleótidos e a sequência gerada torna-se completamente diferente da anterior. O ADN é lido como se fosse um texto de um livro. Imagine que tinha as palavras todas coladas. Como conhece as palavras, conseguiria ler na mesma. Mas se fosse retirada uma única letra na sequência de palavras, deixaria automaticamente de conseguir ler.

Que é então o que acontece quando se dá o corte e reparação nas cadeias de ADN…

Exato. Tipicamente é introduzida ou retirada uma letra. E não só o código genético fica errado como costuma aparecer aquilo a que chamamos um “codão-stop”, que é uma espécie de ponto final no texto. A sequência deixa de ser transcrita, não é traduzida em proteínas e ocorre o silenciamento do gene, que às vezes é desejável e que foi o que aconteceu na experiência do cientista chinês He Jiankui. Utilizaram esta estratégia para silenciar o gene que codifica uma proteína que se chama CCR5 e é co-recetora do HIV. Em teoria, o que este grupo de investigadores fez é positivo, mas na prática nem tanto.

FOTO MIEK SEGAR/REUTERS

Porquê?

Há um problema que tem precisamente a ver com o facto de as CRISPR não serem suficientemente precisas para garantir que vão cortar apenas naquele sector muito específico. Há uma forte probabilidade de ter havido uma modificação noutras zonas do genoma destas crianças. É evidente que não terão sido alterações grosseiras, caso contrário elas nem sequer teriam nascido, mas pode bem ter havido uma modificação. Daí que haja um consenso na comunidade científica de que se utilize todas as tecnologias de edição genética apenas na linha somática, em células diferenciadas que não vão propagar à descendência as alterações genéticas que são feitas com estas ferramentas.

Já falámos de Portugal. E no resto do mundo, quão utilizada tem sido esta tecnologia das CRISPR?

As CRISPR estão atualmente ao alcance de um grande número de laboratórios um pouco por todo o mundo. A vantagem destas ferramentas é que são de muito mais fácil acesso do que muitas outras de edição genética. Estão bastante disponíveis, inclusive em Portugal. Basta encomendar os reagentes a um fabricante e ter um algum know-how para saber como utilizá-las nas células.

He Jiankui, o cientista chinês que disse ter modificado geneticamente dois embriões <span class="creditofoto">FOTO ANTHONY KWAN/BLOOMBERG</span>

He Jiankui, o cientista chinês que disse ter modificado geneticamente dois embriões FOTO ANTHONY KWAN/BLOOMBERG

O que tem então impedido os outros cientistas de fazerem o que He Jiankui fez?

Creio que os restantes cientistas não têm querido fazer o mesmo que esse cientista chinês fez. Mas já poderiam tê-lo feito, é um facto, apesar de isso exigir uma combinação entre ambiente clínico e ambiente de investigação que não está presente em todos os laboratórios. Uma coisa é modificar embriões em laboratório e outra é implantá-los nas mães. Isso exige não só que se tenha acesso a tecnologias de investigação, como também a clínicas de fertilidade.

Em Portugal estariam reunidas essas condições?

Sim, se houvesse vontade de repetir esta experiência seria exequível fazê-lo.

Considera que a experiência do cientista chinês poderá abrir um precedente? Que haja outros cientistas a não querer ficar para trás e a repetir o que foi agora feito?

É evidente que aqueles investigadores mais aflitos e com mais vontade de serem disruptivos podem vir a sentir-se tentados a fazer algo semelhante. George Church, famoso geneticista da Universidade de Harvard, foi polémico ao dizer que aplaudia a experiência; basicamente ele acha que já não tem de ser politicamente correto.

Isso significa que todos os cientistas que condenaram estavam só a ser politicamente corretos?

Não, acho mesmo que a maioria dos cientistas concorda que esta tecnologia ainda é demasiado pouco precisa para poder ser usada para modificar de forma permanente o nosso genoma e o das gerações futuras. Mas, e como referi anteriormente, quando for mais precisa e tivermos a certeza de que o risco é mínimo, aí sim, é muito provável que venha a ser utilizada.