Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Não é uma estrada, são muitos caminhos

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Deixa-me regressar ao assunto das touradas, esperando que os ânimos estejam agora mais calmos. Na forma como se tem feito este debate tudo remete para a barbárie e para a civilização. É natural que o discurso político se tente apresentar como progresso para o bem. Eu próprio me terei socorrido muitas vezes deste ideal iluminista. Mas, apesar dele fazer sentido (assim como faz sentido falar de civilização, no contexto a que se refere o excelente texto de Francisco Assis), devemos fazê-lo com alguma humildade. Porque não raras vezes ele é mesmo usado para mostrar a supremacia de uns em relação a outros, tomando como universais valores que é discutível que o sejam. Parece-me que é o caso. E assim, quem o usa imagina-se, antes do tempo, do lado certo da história. Herdeiros e precursores da verdade. Como se a história seguisse um caminho certo e a humanidade não fosse mais do que a parteira do futuro. Quem acreditou nisso acabou sempre em becos bem escuros.

Claro que há bem e mal. Mas cada avanço da história carrega pesadamente os dois, nas suas causas e nas suas consequências. A história não segue uma estrada, perde-se em milhões de caminhos que nem à distância conseguimos cartografar. A guerra trouxe Auschwitz e o progresso tecnológico. O progresso tecnológico trouxe a vacina e o nuclear. A libertação da mulher trouxe liberdade e lares de idosos. As máquinas trouxeram o conforto e o desemprego. Há certo e errado, não há uma caminhada para o bem.

Todas as lutas acreditam numa evolução em progresso. É o caso da luta pela igualdade: dos escravos em relação aos senhores, dos trabalhadores em relação aos patrões, das mulheres em relação aos homens, dos homossexuais em relação aos heterossexuais. Mas este rio tem uma fonte: a luta contra o privilégio e a ideia de que todos as pessoas nascem livres e iguais em deveres e direitos. É nisto que se filia a esquerda e o pensamento liberal.

Sendo legítima a luta pelos direitos dos animais (ou dos nos nossos deveres para com os animais, para ser mais rigoroso), ela não se filia num processo histórico nascido na revolução francesa. Porque ela não radica na ideia de um valor único e irrepetível de cada indivíduo, com raízes no antropocentrismo e no humanismo que marcam a cultura ocidental. Não faz sentido ser contra a pena de morte se a vida humana não se distinguir, em valor, de todas as outras. Pode haver quem alargue esta ideia aos animais e terá um espinhoso caminho filosófico pela frente. Mas não podem reescrever uma história de luta para concluírem que o fim da tourada é a conclusão lógica do fim do apedrejamento de mulheres ou de outras tradições desumanas.

Claro que há bem e mal. Mas cada avanço da história carrega pesadamente os dois, nas suas causas e nas suas consequências. A história não segue uma estrada, perde-se em milhões de caminhos que nem à distância conseguimos cartografar

A crescente importância dos direitos dos animais resulta do processo de industrialização da natureza, que nos afastou da sua hostilidade mas também da sua compreensão – com os efeitos ambientais que conhecemos. Coincide com a morte do mundo rural. Não é por acaso que remetemos comportamentos sociais e culturais que consideramos universalmente corretos à urbanidade e à civilidade. Num olhar etnocentrista, a cidade é onde o humano evoluiu, libertando-se das regras da natureza. Neste sentido estrito, a tourada é uma questão de civilização (e de cultura, já agora). Porque a realidade civilizacional com que se relaciona está a morrer, é provável ela acabe daqui a umas décadas.

Se concedo que não podemos discutir o bem-estar animal ignorando toda a evolução da relação da humanidade com a violência, também não podemos discutir a relação que hoje temos com os animais ignorando a urbanização e industrialização dos nossos modos de vida e os efeitos nefastos que tiveram para a própria natureza. Por isso tenho sempre insistido que, gostando ou detestando, se deve olhar para a tourada como a arqueologia de um tempo em que homem sabia que a sua vida dependia da morte. E que a desaprendizagem desse conhecimento primordial tem efeitos profundos na sobrevivência da nossa espécie e do planeta. Isto não muda a posição que cada um tiver sobre o assunto, mas muda a arrogância com que fala dele.

Não penso, no entanto, que o “animalismo” (que não é necessário para ser contra a tourada) resulte de um processo de alargamento de direitos. Aliás, ele ganha força quando assistimos a um retrocesso nos direitos laborais e, como nos anunciam Trump e Bolsonaro, provavelmente de outros. Os direitos humanos e dos animais não seguem em estradas paralelas. E não é certo que as duas sigam sequer para a mesma direção. Poderemos um dia viver numa sociedade que trata muito melhor os animais e muitíssimo pior os humanos. Os caminhos da história são bem mais complicados do que a subida de uma montanha até aos píncaros da civilização. E é a incapacidade de o perceber que levou a sobranceira ministra da Cultura a colocar-se do lado certo da história e a chamar para si as luzes da “civilização”.