Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteiro
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Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteiro
Um elevador social avariado
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Um estudo conduzido pela Edulog, um think tank da Fundação Belmiro de Azevedo, conclui algo que todos sabíamos empiricamente: os filhos das pessoas mais privilegiadas conseguem entrar em cursos superiores com mais prestígio. Ou, dito da forma direta com que o ‘JN’ titula: “Alunos pobres ficam fora dos cursos com notas mais altas”.
Não devia ser assim, claro. A meritocracia não pode ter a ver com a condição social. O problema é que a condição social tem vindo a condicionar o mérito. Já estivemos melhor, já estivemos pior e, provavelmente, retirar-se-á deste estudo coordenado por Alberto Amaral, reitor da Universidade do Porto entre 1985 e 1994, a ideia de que é preciso mais igualdade de oportunidades. O problema, aliás, já foi estudado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que chegou à conclusão de que a mobilidade social já foi muito maior no nosso país. Havendo acordo de que é necessária mais mobilidade, o problema é saber como esta se realiza.
Durante séculos a ascensão social quase não existia. Nascia-se e morria-se na mesma classe e com o mesmo estatuto. A Igreja, as Forças Armadas e o aventureirismo eram exceções à regra. Porém, a partir do séc. XX, sobretudo, as coisas mudaram substancialmente. Nomeadamente, depois da II Guerra, os crescimentos económicos e o alargar dos sistemas democráticos permitiram a ascensão social por diversas outras vias. Dos estudos subsidiados (estatal ou privadamente), passando pelos partidos políticos, sindicatos e diversas associações (incluindo as desportivas) bem como as indústrias de entretenimento fizeram os ascensores sociais funcionar com muito maior facilidade.
Este alargar da elite não a transformou numa normalidade. Aliás, é bom sublinhar que é bom haver elites e que acaso elas fossem a norma não existiriam. O verdadeiro problema é as elites serem constituídas sempre pelos mesmos, a perpetuação de famílias no seu seio.
Até ao fim do século XX mais e mais gente acedeu à elite, o que provocou, por sua vez, mais ascensões. No entanto, o acesso baseava-se no esforço e no talento reconhecido por quem já lá estava. Do mesmo modo que os seminários serviram para dar cultura a muitos filhos de pobres mas, entre esses, só alguns se distinguiram, o mesmo se ia passando nos estudos ou nas artes, onde se afirmavam aqueles que mesmo parecendo em rutura se tornam, por talento, ou até moda, reconhecidos pelos que, até então, ditavam as regras.
Quem está no topo, não querendo concorrência, não estará a comprar através de pequenas migalhas dadas a manutenção do ‘status quo’?
Porém, desde essa altura, as elites parecem ter vindo a estagnar e a reproduzir-se. Nomeadamente em Portugal, o refrescamento provocado pelo 25 de Abril (na política, nos negócios e empresas) tudo parece ter ficado imobilizado. E seria bom se pensássemos se estamos a atuar da forma mais certa para voltar a mexer no elevador social (que como todos elevadores sobe, mas também desce).
Isso significa refletirmos sobre alguns temas tabu, politicamente difíceis, mas que nos ajudem a verificar causas desta estagnação. Por exemplo:
1) Se não há uma política excessiva de subsidiação para quem está em baixo, retirando estímulo à ascensão? Quem está no topo, não querendo concorrência, não estará a comprar através de pequenas migalhas dadas, a manutenção do ‘status quo’? Este é um assunto muito difícil, mas que merece reflexão. Um dos méritos da ascensão social segura é resultar de sacrifícios (dos pais, dos próprios) e da prova do mérito para fugir a situações difíceis. Se estas situações são amenizadas (ainda que apenas aparentemente), a vontade de sair do meio social torna-se reduzida, apenas para aqueles têm mais força de vontade ou autoconfiança.
2) Deveríamos, também, colocar como hipótese serem as Universidades a escolher os seus alunos, aqueles que os seus professores consideram melhores, em vez de fundamentarmos as escolhas em notas do Ensino Secundário, tendo em conta as disparidades possíveis, mesmo com exames nacionais, entre regiões e classes sociais;
3) Também na Saúde deveríamos pensar se o SNS devia ser verdadeiramente universal e gratuito, ou se pelo contrário deveria ser pago, em parte, por escalões de rendimento (todos sabemos que a elite, num hospital público, passa à frente, porque é constituída por amigos ou pacientes privados dos médicos);
4) Por último, era interessante discutir se a isenção de impostos, que recai sobre quase 50% dos cidadãos, deveria existir, ou se pelo contrário, nem que simbolicamente, todos, absolutamente todos, deveriam pagar.
Seriam formas de aqueles que acham que tudo lhes é devido compreenderem que só lhes é devido se também contribuírem. E também daqueles que acham que o Estado lhes presta um favor, sentir que pagaram, na medida das suas possibilidades, o serviço que lhes prestam.
E de assim dar um estímulo a quem quer apanhar o elevador para cima, onde lá chegando inevitavelmente atirará alguns mais para baixo.