Andamos nisto

Andamos nisto

Bernardo Ferrão

Sem papas na língua contra a ‘novilíngua’ governamental

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Quando George Orwell escreveu “1984” apresentou ao mundo a chamada ‘novilíngua’. Mais do que uma nova língua, a ideia passava por controlar ou mesmo apagar da linguagem determinadas palavras ou conceitos. Desta forma, o governo tornava-se capaz de direcionar o pensamento das pessoas, impedindo que ideias indesejáveis aparecessem no debate público.

Lembrei-me de recuperar o conceito orweliano depois de mais uma semana de realidades paralelas impostas pelo discurso dos responsáveis políticos, Governo e oposição. A ‘novílingua’ pretendia sobretudo influenciar, restringir o raciocínio. O problema, para nosso azar, é que Orwell tratava de ficção. Nós levamos com a realidade (!).

Quando ouvimos Pedro Nuno Santos pedir desculpa aos utentes afetados pelas supressões nos transportes públicos, garantindo que agora é que o povo terá o que “legitimamente exige”, não podemos deixar de nos indignar. Por quem nos tomam? Agora é que vão fazer o que não fizeram nos últimos três anos e meio? Eleições a quanto obrigas!

Quando nos dizem que estão a retirar bancos das carruagens do Metropolitano, tal como fizeram na Fertagus, para criar novos espaços “multiusos” e para transporte de crianças e volumes, acreditam mesmo que nos convencem com a palavra “multiuso”? Na verdade, o Governo quer é arranjar mais espaço para votos. Mas fez tudo ao contrário, lançou os passes sociais e só depois se lembrou que não tinha infraestruturas para o aumento da procura. O passageiro sofre.

E o que dizer de um primeiro-ministro que nos bombardeou com o Estado simplex, que até vacas punha a voar, e agora defende que o mau funcionamentos dos serviços públicos é “inaceitável”. Achará António Costa que o seu mea culpa vale mais do que a humilhação e o desgaste de centenas de pessoas que só querem tirar e pagar o que é seu por direito - o documento de cidadão? É de facto “inadmissível” que o Governo ache que o povo não percebe estes floreados eleitorais e, sobretudo, tenha deixado as coisas chegarem a este ponto.

Mas o prémio ‘novilíngua’ do mês vai mesmo para Graça Fonseca. A ministra da Cultura conseguiu garantir, e sem se rir, que as obras de arte do Estado desaparecidas afinal não estão desaparecidas, “precisam é de uma localização mais exata”. A declaração é inacreditável pela arrogância e pela ausência de esclarecimento. Revela bem a importância que é dada ao bem público. Sabemos que há 170 obras em paradeiro incerto, sabemos que há um inventário em curso mas nada nos explicam sobre os empréstimos: o quê? E a quem? Ficámos sim com mais certezas sobre o descontrolo na gestão do património. Concluímos que, sendo antiga, a história andou escondida. E pior: mais uma vez não há responsáveis.

Enfim, nada de novo. O Governo pode ter todos os defeitos mas pelo menos é coerente. Basta lembrar a dúvida do ex-ministro Azeredo Lopes quando era questionado no Parlamento sobre Tancos: “Continuo sem ter a certeza se falta material ou se é uma falha de inventário. Não digo nem que sim nem que não”.

Por falar em quadros desaparecidos: podemos sempre fazer o trocadilho com PSD e CDS, como têm conseguido borrar a pintura, mas bastam-nos os factos. Assunção Cristas surgiu nas televisões de trincha na mão a falar do óbvio, das pessoas, e a tentar compor o desastre anunciado pelo Presidente Marcelo. Rui Rio quis voltar ao baú das propostas fraturantes mas sem consequências práticas e diz-nos que é preciso converter os votos brancos e nulos em lugares vazios na Assembleia da República. Com o país no estado em que está, o líder do PSD acha que o mais importante é mesmo a reforma do sistema eleitoral e político. Não admira que Marcelo tenha de vir alertar para a crise de uma direita errante. Todos sabemos o que está nas entrelinhas do oráculo presidencial de olho no segundo mandato, mas sabemos também que alguém tem de puxar pela alternativa, já que os próprios não o fazem. A bem da democracia, a ‘novilíngua’ só pode ser combatida sem papas na língua.