BREXIT

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado… e ele disse “talvez” *

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Theresa May pediu formalmente o adiamento da saída da UE até 30 de junho. Bruxelas responde que isso só é possível se o Parlamento aprovar o acordo que já rejeitou duas vezes

Texto PEDRO CORDEIRO

O pedido de adiamento já seguiu para Bruxelas. A primeira nega também já chegou a Londres. A nove dias da data (ainda) legalmente consagrada, a primeira-ministra britânica escreveu ao presidente do Conselho Europeu a pedir para o Brexit acontecer não a 29 de março, mas a 30 de junho.

A resposta de Donald Tusk a Theresa May foi dada à tarde, em conferência de imprensa sem perguntas. “Acredito que um adiamento curto seria possível, mas na condição de uma votação a favor do acordo de saída na Câmara dos Comuns”, afirmou, sem precisar a respetiva duração mas frisando que tal depende de os líderes dos 27 aceitarem as suas recomendações. Não se prevê que seja já amanhã.

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Anunciando que não planeia, para já, convocar qualquer reunião extraordinária além da que está marcada para quinta e sexta-feira, Tusk reconheceu um justificado “fastio com o Brexit” e louvou a “paciência e boa vontade” da União Europeia (UE) para com o Reino Unido. Defende que “até ao último momento” há que procurar um desfecho positivo, embora “sem reabrir o acordo de saída”.

Horas antes a Comissão Europeia reagira com ceticismo à data de 30 de Junho. Para o Executivo europeu, o dia 23 de maio, o primeiro das eleições europeias (que se realizam até 26) será o último em que é possível o Reino Unido sair da UE sem participar naquele escrutínio.

Batata quente no Parlamento

A missiva de May recorda a moção aprovada na semana passada pelo Parlamento do Reino Unido. Mandatava o Governo para pedir um adiamento curto na condição de haver um acordo de saída aprovado até esta quarta-feira, 20 de março, e reconhecia que “se tal não acontecesse, um adiamento mais longo obrigaria o Reino Unido a realizar eleições para o Parlamento Europeu”. Opção que parece “inaceitável” à primeira-ministra, como explicou esta quarta-feira no debate semanal na Câmara dos Comuns.

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A governante escreve a Tusk que não foi possível levar a votos, esta semana, o acordo que assinou com os 27 em novembro e que os deputados chumbaram duas vezes. Queria fazê-lo, confrontando o Parlamento com o apertar do prazo, mas o presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow, não deixou. Rejeitado em janeiro (por 432 contra 202 votos) e este mês (391-242), o documento só pode regressar ao debate na mesma sessão legislativa numa forma “fundamentalmente diferente — não diferente em termos de redação, mas diferente em termos de substância”, explicou Bercow, apoiado no regimento parlamentar.

Para permitir isso, May pede que o Conselho Europeu aprove o resultado das conversações que teve no início do mês com Juncker, em Estrasburgo. Quer ainda discutir com os parceiros europeus “mais propostas” relativas à polémica solução encontrada para evitar a fronteira irlandesa, apesar de a UE já ter dito repetidas vezes que não tenciona reabrir o acordo.

Embora Tusk não se tenha pronunciado sobre a hipótese de um adiamento longo, a que May aludira na carta, ou as consequências de possível novo chumbo do acordo, o recado imediato para os deputados é que não apoiar o acordo firmado poderá conduzir a uma saída sem acordo a 29 de março. Há algumas dezenas que veriam esse desenlace com bons olhos, mas estão em minoria. Os demais terão de avaliar as vantagens e desvantagens de cenários pouco apetecíveis: apoiar May a contragosto, arriscar o Brexit duro ou acreditar que em cima do prazo será possível uma terceira via ou reversão do processo. Nenhum é isento de riscos.

Juncker endurece o tom

A Comissão Europeia vê a escolha como “binária”: ou a extensão do prazo é até 23 de maio ou terá de ser, pelo menos, até ao fim do ano. E, se assim for, os britânicos terão de eleger os 73 eurodeputados que os representam no Parlamento Europeu. “É a única forma de proteger o funcionamento das instituições da UE e a sua capacidade de tomar decisões”, lê-se num documento da Comissão.

Bruxelas não quer “importar algumas das atuais incertezas do Reino Unido para os 27”. Um porta-voz de Juncker informou que este falou com May ao telefone para a “desaconselhar claramente” a pedir adiamentos para lá da data das europeias, caso contrário o Reino Unido teria de participar nelas. Até agora o entendimento geral era que seria possível um adiamento até 2 de julho sem ida às urnas, já que é nesse dia que o Parlamento Europeu toma posse. Pelos vistos, Juncker quer segurança adicional.

Sem eurodeputados britânicos gerar-se-iam “dificuldades institucionais” e “incerteza jurídica”, isto é, dúvidas sobre a legalidade do próprio Parlamento Europeu que vai ser eleito, explicou o porta-voz. Todas as deliberações futuras poderiam, no limite, ser invalidadas nos tribunais.

Uma reação ainda menos contemporizadora veio de Paris, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros explicou que o Reino Unido só pode sair da UE com ratificando o acordo já fechado ou, então, sem acordo. “Estamos prontos” para tal eventualidade, assegurou Jean-Yves Le Drian na Assembleia Nacional.

Para o chefe da diplomacia gaulesa, qualquer adiamento curto só pode servir para o Reino Unido ratificar a saída, ficando “muito claro que o acordo de saída não será renegociado e será mantido na íntegra”, sem participação britânica nas eleições europeias.

França não autorizará o adiamento sem “garantias suficientes da credibilidade da estratégia [de May]”, hoje ausentes, avisa Le Drian. Já o gabinete do Presidente Emmanuel Macron alertara: “Comprar tempo só por comprar tempo não constitui projeto nem estratégia. Agora não é tempo de procrastinar”. O porta-voz do Executivo francês, Benjamin Griveaux, explicou: “A posição de França é simples: a primeira-ministra britânica tem de nos explicar por quanto tempo [quer um adiamento] e para quê, além de nos dar garantias”.

Recorde-se que qualquer adiamento do Brexit terá de ter a aprovação dos 27 Estados-membros que ficam na UE. A revista “Le Point” indica que Macron está pouco inclinado a aceitá-lo.

A questão das eleições tem de estar resolvida, em todo o caso, até 11 de abril. Catorze Estados-membros iriam receber os assentos de parte dos eurodeputados britânicos cessantes e, se assim não for, terão de preparar o ato eleitoral sabendo com que contam. O documento em causa exige ainda ao Reino Unido um “espírito de cooperação leal” e mesmo “abstenção construtiva” em questões que digam respeito ao período posterior ao Brexit.

Estado de negação

Esta manhã em Westminster May não ouviu uma única expressão de apoio, fosse do seu Partido Conservador ou da oposição, fosse de europeístas ou eurocéticos. “Enquanto primeira-ministra não estou disposta a atrasar o Brexit para lá de 30 de junho”, garantiu, o que conduz à pergunta: e se não for suficiente, demite-se? O seu gabinete não esclarece: “O que vemos é o grau de determinação da primeira-ministra em cumprir o Brexit”.

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Segundo May, todas as alternativas ao seu acordo também foram chumbadas pelos deputados: a saída sem acordo, a proposta alternativa do Partido Trabalhista (saída “suave” mantendo o Reino Unido em união aduaneira com a UE) e o segundo referendo ao Brexit. A nove dias do prazo e mil dias desde a consulta popular de 23 de junho de 2016, há maiorias contra tudo, mas nenhum consenso a favor de um rumo. A chefe do Executivo convocou para quarta à tarde uma reunião com dirigentes da oposição e poderá falar ao país ao fim do dia.

May ainda teve de ouvir o líder parlamentar dos nacionalistas escoceses (SNP), Ian Blackford, citar o seu ministro-adjunto David Lidington (na prática um vice-primeiro-ministro), que há dias afirmou aos deputados que um adiamento curto do Brexit sem haver acordo ratificado seria “totalmente imprevidente”. Da bancada do seu Partido Conservador veio a esperada invetiva dos eurocéticos, pela boca do deputado Peter Bone: adiar a saída é “trair o povo”, acusou. “Sempre quis sair a 29 de março”, justificou a primeira-ministra, que responsabilizou o Parlamento por não ter aprovado o seu acordo.

O líder trabalhista (cujas posições neste assunto são no mínimo ambíguas), recordou-lhe que supervisionar e apreciar criticamente a ação governativa é função básica de qualquer Parlamento. Jeremy Corbyn está a favor de um adiamento curto, mas admite passar a apoiar um mais longo caso a situação se complique. E é a favor de um segundo referendo mas mandou a bancada parlamentar abster-se quando o Parlamento discutiu essa hipótese. Sabe-se que nunca morreu de amores pela UE.

Para determinar que via seria aceitável, o também conservador Ken Clarke, um dos mais europeístas na bancada governamental, propôs uma série de votações indicativas para apurar o nível de apoio a cada opção. Idêntica solução foi defendida pelo ex-líder trabalhista Ed Miliband e pela sua camarada Yvette Cooper. Esta, considerando “profundamente perigoso” o comportamento de May, lançou-lhe um apelo: “Suplico à primeira-ministra que pense de novo”.

Para May, já houve “muitas oportunidades” de votar e nenhuma alternativa ao seu plano singrou. Mas Lidington prometera essas votações há dias, para contornar uma proposta trabalhista (chumbada por apenas dois votos) para exigi-las. “Esta primeira-ministra está no pior estado de negação, recusa-se a ouvir seja quem for, limita-se a fazer o mesmo repetidas vezes e dirige-se teimosamente para a beira do precipício”, diagnosticou Cooper. Tim Farron, antigo líder dos Liberais Democratas, desabafa: “Dançamos ao tom dos extremistas”. Refere-se à ala anti-UE do Partido Conservador, que May procura apaziguar mas que nem por isso a despreza menos.

Saudar a marcha

Com o Conselho Europeu marcado para quinta e sexta-feira, Blackford, do SNP, perguntou a Bercow se seria possível realizar um debate parlamentar no sábado, já com as conclusões vindas de Bruxelas, de forma a resolver o impasse.

À hora de fecho desta edição decorria um debate de urgência sobre o Brexit, agendado minutos antes pelo Partido Trabalhista. O presidente da Câmara dos Comuns admite a possibilidade de convocar os deputados no sábado, o que faria as delícias da independente (ex-conservadora) Anna Soubry.

Esta deputada recordou que nesse dia está agendada uma enorme marcha pró-UE que desagua às portas do Parlamento.

“Centenas de milhares de pessoas vão marchar em Londres a favor de uma consulta popular, incluindo muitos jovens que exigem uma palavra a dizer sobre o seu futuro, já que irão arcar com o fardo do Brexit”, disse a ardente europeísta. Nada melhor do que os deputados saírem à rua a saudá-los, sugeriu. Faltará, então, menos de uma semana para o Brexit.

* O autor deste texto ignora se o papel utilizado por May para escrever a Tusk era perfumado ou mesmo se a carta foi enviada em formato digital. Não resistiu, contudo, a parafrasear um verso de “Namoro”, de Viriato da Cruz, que Fausto ou Sérgio Godinho musicaram tão bem