Estilhaços da guerra a Marques Vidal
A imagem que temos da atuação da justiça alterou-se muito nos últimos anos. Os muros altos que protegiam certos sectores da sociedade deixaram de ser intransponíveis. Como nunca antes se viu, os investigadores não hesitaram perante os grandes da política e do futebol. E mesmo quando o mal estava dentro de casa, o Ministério Público atuou sem pestanejar. É verdade que também houve erros e excessos – o raide às Finanças foi lamentável -, mas no essencial hoje há menos impunidade. A democracia respira melhor.
É neste quadro, e perante a perceção desta “nova fase”, que questiono a frente aberta contra Joana Marques Vidal. Se há alguém que contribuiu para esta mudança de paradigma foi a atual PGR. Ao lançar para o debate público, completamente a destempo, a questão da recondução, a ministra Francisca Van Dunem - e logo ela, que veio do MP! - fragilizou quem tem apresentado resultados no combate à corrupção e priorizado a autonomia e independência da justiça.
Ao pôr em causa a continuação de Marques Vidal, o Governo condicionou-a mas caiu numa armadilha e ficará com ónus. Em vez de esperar que a PGR saísse pelo próprio pé, como a própria deu a entender ao invocar o mandato único, António Costa deixou que se criasse a ideia de que está incomodado com a atuação deste Ministério Público. A partir de agora todos os cenários são maus. Se Marques Vidal ficar, a relação com o Governo está minada. Se sair, o próximo Procurador, por mais provas de independência que dê, virá com o rótulo do escolhido-pelo-PS-para-tirar-de-lá-Marques-Vidal, o que é péssimo para o MP. Se, instada a continuar, a PGR preferir mesmo assim sair, o PM será sempre acusado de ter provocado a rutura – porque deixou que lhe questionassem o mandato e o perfil e defendeu a ministra que feriu a Justiça com as suas “opiniões pessoais”. Seja qual for o desfecho, Costa sairá ferido pelos estilhaços da sua guerra.
Lançar esta guerra a Marques Vidal, encostando-a a uma fação, é tudo menos sensato. Estamos em vésperas de eleições e o caso Sócrates segue para julgamento. Costa e os seus homens estão a oferecer de bandeja uma narrativa à direita
Quando se fez a revisão constitucional o objetivo era tornar o mandato do Procurador-Geral da República mais longo e único - Cunha Rodrigues esteve 16 anos no Palácio Palmela. O problema é que a lei não reflete o espírito que então se quis imprimir. É omissa, não especifica se o mandato de 6 anos é único ou não. Francisca Van Dunem devia ter evitado fazer interpretações sobre um assunto tão delicado aos microfones de uma rádio. Acredito que não o terá feito com o objetivo político de abater Marques Vidal, mas Costa em vez de admitir o erro e fechar o assunto, continuou a dar-lhe gás. E Carlos César também.
Este caso revela o quão perigosa é a mistura entre política e justiça e como o cargo de PGR parece tão apetecível para o poder executivo. Melhor do que ninguém, António Costa sabe onde fica a linha divisória e o que ele e o PS passaram com os processos que envolvem figuras socialistas. Lançar esta guerra a Marques Vidal, encostando-a a uma fação, é tudo menos sensato. Estamos em vésperas de eleições e o caso Sócrates segue para julgamento. Costa e os seus homens estão a oferecer de bandeja uma narrativa à direita. As acusações de condicionamento do poder judicial vão regressão ao guião. E ainda falta a palavra definitiva de Marcelo Rebelo de Sousa. O PR não faz nada ao acaso, e já quis lembrar que o poder constitucional da nomeação é dele e de mais ninguém.