POR PEDRO SANTOS GUERREIRO

Belmiro, o Homem Sonae, o homem das nuvens

Foi mais temido do que elogiado, foi mais idolatrado do que amado. Morreu esta quarta-feira, aos 79 anos. Belmiro de Azevedo explicado por Pedro Santos Guerreiro

Texto Pedro Santos Guerreiro

1. O Homem Sonae ou é líder ou candidato a líder

Um génio. Um génio bom de mau-génio. Ele próprio o furacão desenhado no antigo logótipo da sociedade-empresa-grupo-império. O Homem Sonae, criado à sua imagem em dez mandamentos, para o que o self-made man inspirasse self-made men e abolisse os yes-men. Belmiro de Azevedo, 1938-2017, deixou sucessor na Sonae, não tem sucessor no país.

2. O Homem Sonae é culto, evoluindo do estágio de competência técnica para o estágio de Homem culto em geral

Um homem não se define pelo que faz, mas o que faz define-se pelo que ele é. O que um homem faz é o que vemos dele em público, o que deixa feito é o seu legado para o público. Belmiro de Azevedo tem uma biografia empresarial impressionante, de crescimento e diversificação, mas escrever que foi o maior empresário português da democracia é apenas contar o que ele fez: muito, quase tudo. Não é contar como ele o fez: com um motor de combustão de ideias na cabeça, levando tudo à frente com os braços, numa exigência implacável, numa persistência indómita. “A minha cabeça está nas nuvens mas os meus pés estão firmemente no chão”. Foi mais temido do que elogiado. Foi mais adulado do que amado.

3. O Homem Sonae deve ter disponibilidade temporal e resistência física para vencer períodos mais intensos de carga de responsabilidades

Não foi só a pulso, foi com os punhos. Num país em que a democracia foi apropriada nos negócios por um regime público-privado de Lisboa (isto é, pelo conúbio político-empresarial de telefones vermelhos), Belmiro de Azevedo foi o homem contra-regime que ficou acima do regime, que avançou contra a doutrina prevalecente e suspeitosa dos “centros de decisão nacionais” que faz negócios distribuindo compensações, dinheiros ou favores pelas pessoas que os aprovam ou deixam de bloqueá-los. Fez acordos com governos, não ficou refém de qualquer deles. Cansou-se de todos os poderes políticos, não se casou com nenhum. Fê-lo no Norte, o que só os Sul podem achar irrelevante.

4. O Homem Sonae deve ter responsabilidade mental para aceitar críticas vindas de superiores ou subordinados, deve reagir ou replicar, mas deve evitar a retaliação sistemática

Zangou-se com a família Pinto Magalhães, que o acusou de golpe para tomar o controlo da Sonae. Fez sete OPV e foi acusado pelos acionistas minoritários de os enganar. Foi o maior empregador privado do país e foi acusado pelos sindicatos de pagar salários baixos e de ser inclemente nas exigências sobre os trabalhadores. Zangou-se com Cavaco, com Marcelo, com Sócrates, com Jardim Gonçalves, com Rendeiro, com Berardo, com Queiroz Pereira, com Amorim. Faria as pazes com metade deles. Mas não com o último dos inimigos: Ricardo Salgado. Que o venceu na OPA à PT, de braço dado com José Sócrates.

5. O Homem Sonae deve ter apreço pelo trabalho dos seus subordinados, cuidando permanentemente para que as condições de trabalho e o grau de conhecimento de todos os trabalhadores sejam continuamente melhorados

A Sonae cresceu como um conglomerado, que passou por sucessivas reestruturações e alternâncias de chefias de topo, para crescer e diversificar, para descristalizar os lideranças. Conglomerados de madeira, hipermercados, centros comerciais, imobiliário, turismo, indústria, telecomunicações – e esse “tributo à sociedade” chamado Público, que financiou e protegeu de pressões. Ninguém fez tanto, nem com tanta diversidade, neste tempo.

6. O Homem Sonae deve ser reconhecido interna e externamente pela verticalidade do seu caráter

Foi nas telecomunicações que subestimou o poder do seu adversário, a dupla poderosa Sócrates-Salgado. Quando avançou com uma OPA sobre a Portugal Telecom, em 2006, o país ficou incrédulo. Porque o David irrompia sobre o Golias. Foi derrotado porque não conseguiu sequer levar a OPA à Bolsa, ela dependia de uma “desblindagem de estatutos” que foi chumbada em assembleia-geral. Ainda hoje se diz que Belmiro perdeu “por um euro”. Negociante exímio, pagava o mínimo possível e não subiu segunda vez o preço oferecido por ação. Se tivesse subido mais um euro, o negócio poderia ter sido feito. Belmiro perdeu a OPA deixando a gestão executiva do grupo entregue ao filho Paulo. A Sonae ter-se-ia transformado se tivesse conseguido comprar a PT. Mas outra alteração teria acontecido, maior, mais profunda. Se a Sonae tivesse comprado a PT, o país hoje seria outro. Porque Ricardo Salgado não teria espraiado o seu poder, o que teria descadeirado um grupo afinal montado sobre contas falsas, que disseminou uma teia de poder em Portugal. Não foi a Sonae que perdeu a OPA, foi o regime de poder que venceu o “independente” Belmiro. Perdeu a Sonae. Perdeu o país.

7. O Homem Sonae deve ter elevados critérios de exigência pessoal, com forte devoção às suas tarefas, embora procurando sempre um justo equilíbrio com outras atividades

Independente, empresário, empreendedor. De todas estas palavras, a que mais se aplica é a mais juvenil, a inexplicavelmente menos levada a sério, talvez porque seja usada demasiadas vezes apenas para quem tem boas ideias: empreendedor. Belmiro, empreendedor, tem boas ideias, tem ideias geniais, mas tem sobretudo uma capacidade férrea de arquitetar a sua implementação, erguendo equipas e derrubando muralhas. No dia-a-dia na Soane, não parece um visionário, parece um bruto. É um despretensioso que tudo pretende alcançar. Consegue-o muitas vezes.

8. O Homem Sonae deve ter um código ético e deontológico rigoroso em termos de valores

É mera coincidência, dirá, mas Sonae tem em japonês precisamente o significado com que Belmiro define o seu estilo de gestão: “be prepared, prepara-se para decidir com pouca informação e com pouco tempo”. Sendo um empreendedor e um empresário, ele tem um discurso de gestão, um dos poucos em Portugal. Porque começou gestor, fez-se empresário. “A minha grande aposta é criar uma empresa que dure muito mais do que três gerações, isso consegue-se com um conjunto de valores simples: (…) Esses mandamentos são valores para mim essenciais. Ser-se frugal, rigoroso, resistente, ambicioso, trabalhador… Não esbanjar, ter uma relação de transparência correta, não ser subserviente nem arrogante.” (in “A gestão segundo Belmiro de Azevedo”, Filipe S. Fernandes)

9. O Homem Sonae tem de aceitar o desafio da concorrência interna e externa

O percurso da Sonae teve um auge e um declínio e uma recuperação. No final dos anos 90, Belmiro de Azevedo era o empresário mais poderoso do país, mas depois das derrotas na OPA à PT e na tomada de controlo da Portucel, e do ceticismo perante a sucessão da liderança executiva do grupo, a Sonae entrou em crise de crescimento. O grupo refez a sua estratégia, já menos à imagem de Belmiro e mais da equipa de gestão profissional. Hoje não é o mesmo furacão, não é o mesmo incêndio de ideias, não tem a mesma capacidade de desafio ao poder político de Lisboa, não vibra sobre o mesmo sonho. Mas é um grupo forte, porventura mais discreto, que faz parte do futuro de Portugal. Belmiro soube preparar a sucessão, como poucos outros grandes empresários portugueses souberam.

10. O Homem Sonae procura a excelência e fá-lo pelo somatório das boas decisões que vai tomando e excluindo liminarmente os erros parciais

Este texto é intercalado pelos dez mandamentos do “Homem Sonae”, escritos por Belmiro de Azevedo em 1985. Eles são a imagem de Belmiro de Azevedo para ele mesmo e por ele mesmo: uma ética de trabalho, de vida e de negócios. Belmiro tem sucessor mas não tem substituto. No génio, mas também na capacidade de afrontar poderes instituídos, com rasgos de humor e de ironia como quando marcou uma presença no Parlamento, não no dia em que os deputados o queriam lá (disse que tinha mais do que fazer), mas apenas no dia seguinte às oito da manhã, para obrigá-los a levantarem-se cedo. Dá vontade de rir, mas não era uma piada. Era Belmiro, ele próprio, o Homem Sonae, o homem com a cabeça nas nuvens e os pés firmemente no chão, no chão que tremia à sua passagem.