REFUGIADOS - PARTE I
Em busca de (nova) vida
NOVO MUNDO Chegada de migrantes à América, no século XIX FOTO D.R.
As vagas de refugiados e migrantes são cíclicas desde o início dos tempos, por todo o mundo. Na edição de hoje, contamos as primeiras perseguições e migrações em grande escala na Europa, que começaram logo com o antissemitismo do século XIII. Na edição de amanhã, abordaremos as do século XX até à atualidade
TEXTO RICARDO SILVA
Todos os dias repetia-se o mesmo cenário. Um barco aproximava-se com o convés cheio de gente onde o desespero e a tragédia preenchiam o olhar. Eram refugiados que fugiam de guerras e perseguições étnicas e religiosas, emigrantes que escapavam da miséria e de sociedades estagnadas e sem esperança. Quando o barco acostava, aquela massa humana desaguava no porto e as autoridades começavam a registar os seus nomes e nacionalidades. Eram uma amostra da babel de onde vinham, falavam em diversas línguas e traziam consigo a diversidade religiosa que os distinguia, mas apesar das diferenças todos partilhavam a mesma esperança, a de um destino melhor nos Estados Unidos.
Corria o século XIX, e aqueles refugiados não fugiam da fome em África ou de um conflito no Médio Oriente. Eram europeus que fugiam de um continente envolto em guerras que se renovavam constantemente, onde a fome matava milhões e os ódios nacionalistas originavam limpezas étnicas. As grandes potências travavam uma infindável série de lutas entre si e a religião continuava a dividir o continente e a dar lugar a massacres. A revolução industrial dera à Europa o poder para dominar grande parte do mundo e criou fortunas incalculáveis, mas a maioria do seu povo continuava reduzido a uma pobreza atroz e à violência endémica, e o dia a dia era uma autêntica luta pela sobrevivência, como Charles Dickens tão bem retratou nos seus romances.
Um genocídio no Reino de Portugal
O antissemitismo foi das primeiras perseguições de grande escala a serem registadas na Europa, e logo em 1290 a Inglaterra expulsou os judeus da sua ilha. Em 1492 foi a vez dos Reis Católicos seguirem o seu exemplo e ordenarem a sua expulsão, tendo 93.000 procurado refúgio em Portugal, onde se juntaram a uma comunidade com séculos de vivência no nosso reino. A perseguição religiosa ainda não se fazia sentir com a mesma intensidade que em Castela. Porém, quatro anos mais tarde os judeus viram-se perante o dilema de se converterem ao cristianismo ou enfrentar a possibilidade de serem expulsos ou mortos. Muitos optaram por aceitar a conversão e tornaram-se cristãos-novos, mas a desconfiança nunca desapareceu e o perigo da perseguição manteve-se elevado.
No início do século XVI, enquanto os marinheiros lusos desbravavam os mares do Oriente, em Portugal a peste e a seca faziam crescer a tensão entre o povo. No dia 19 de Abril de 1506, as igrejas de Lisboa encontravam-se repletas de gente que rezava pelo regresso da chuva e o fim da doença. Naquele clima de elevado fervor religioso, o Convento de São Domingos acabou por ser palco de um episódio que poderia não ter tido maiores consequências, quando um crente jurou ter visto o rosto de Cristo iluminado no altar e os restantes entraram em euforia ao acreditarem estar na presença de um milagre.
No início do século XVI, enquanto os marinheiros lusos desbravavam os mares do Oriente, em Portugal a peste e a seca faziam crescer a tensão. No dia 19 de Abril de 1506, as igrejas de Lisboa encontravam-se repletas de gente que rezava pelo regresso da chuva e o fim da doença. Um acontecimento no Convento de São Domingos foi o rastilho para a morte e a perseguição de judeus
No entanto, entre os presentes encontrava-se um cristão-novo que tentou explicar que o “milagre” na realidade era apenas um reflexo de luz, o que originou um momento de raiva cega entre os fiéis que tomaram a sua explicação como uma demonstração de heresia. Logo ali foi espancado até à morte e não tardou muito para que o povo saísse à rua para acusar os judeus de todos os males que afligiam o reino.
Estava encontrado o bode expiatório, e o rastilho acendeu no momento em que alguns frades dominicanos prometeram a absolvição daqueles que matassem os hereges e assim expiassem os seus pecados. Uma multidão foi-se formando e passado pouco tempo começaram a ser derrubadas as portas das casas onde moravam cristãos-novos. Homens, mulheres e crianças foram arrastados pelas ruas de Lisboa numa autêntica orgia de violência que desembocava no Rossio, onde foram espancados, torturados e humilhados, terminando o seu purgatório em fogueiras improvisadas.
Durante os três dias que se seguiram, um cheiro enjoativo a carne queimada fez-se sentir na capital do reino e nem os gritos de dor dos que morriam foram capazes de causar compaixão entre a populaça que continuava à procura de novas vítimas para massacrar no Rossio.
Só a chegada das forças enviadas pelo rei pôs fim a mortandade, tendo D. Manuel I mandado enforcar os dominicanos que instigaram a violência e punido aqueles que se aproveitaram dela. Porém, o antissemitismo não cessou e quando passados alguns anos a Inquisição chegou a Portugal, voltaram as fogueiras no Rossio e a morte de judeus e cristãos-novos. Os que conseguiram escapar à perseguição abandonaram Portugal com as posses que podiam carregar consigo, seguindo para destinos onde a Inquisição ainda não tinha chegado. Foi o êxodo generalizado da comunidade judaica e a sua quase extinção no nosso país.
Um cheiro enjoativo a carne queimada fez-se sentir na capital do reino e nem os gritos de dor dos que morriam foram capazes de causar compaixão entre a populaça que continuava à procura de novas vítimas para massacrar no Rossio
Porém, apesar da distância e da forma como tiveram de abandonar o reino, os refugiados mantiveram a cultura portuguesa viva ao longo dos anos e chegaram ao século XX orgulhosos das suas origem e identidade, formavam comunidades únicas no mundo e desapareceram apenas quando o Holocausto os aniquilou, perante a passividade do governo português, que desperdiçou a oportunidade de os salvar e compensar pelas injustiças do passado.
A perseguição alastra pela Europa
O antissemitismo foi apenas uma das faces dos conflitos motivados pela religião. Com o advento do protestantismo, no século XVI, o continente dividiu-se entre os que se mantiveram fieis à igreja católica e os que decidiram desvincular-se do poder papal e converter-se a uma das várias correntes protestantes. O conflito alastrou rapidamente e arrastou toda a Europa para a Guerra dos 30 anos, acabando os territórios alemães por sofrer a pilhagem e a destruição de forma mais severa e a sua população caído para metade.
Os calvinistas holandeses e os huguenotes franceses tiveram de abandonar uma Europa onde não era possível sobreviverem, escolhendo a África do Sul como local de exílio. Os seus descendentes deram origem ao povo bóer que juntamente com os colonos britânicos foi expandindo o seu controlo pela África Austral. Numa ironia da história, os descendentes daqueles refugiados que fugiram da Europa para escapar à opressão acabaram por se tornar nos opressores dos povos que ali viviam há milénios. Em pleno século XX impuseram o Apartheid através do qual a minoria branca sujeitou a maioria negra a uma sociedade regida pela segregação racista.
Com o advento do protestantismo, no século XVI, o continente dividiu-se entre os que se mantiveram fieis à igreja católica e os que decidiram desvincular-se do poder papal. O conflito alastrou rapidamente e arrastou toda a Europa para a Guerra dos 30 anos. Os calvinistas holandeses e os huguenotes franceses tiveram de abandonar uma Europa onde não era possível sobreviverem, escolhendo a África do Sul como local de exílio
Nas Américas a chegada dos europeus foi ainda mais brutal. A população índia das Américas foi massacrada pelos invasores e vítima das doenças que traziam consigo, seguindo-se vagas contínuas de europeus que procuravam ali a fortuna que nunca lhes chegaria numa Europa envolta em guerras internas. A violência não era seguramente um exclusivo da Europa, e tanto na Ásia como em África travavam-se guerras mortíferas que davam lugar a enormes vagas de refugiados. A diferença é que os refugiados africanos e asiáticos mantinham-se nos seus continentes, já os Europeus procuravam segurança fora da Europa e as vagas de refugiados e migrantes que produziram acabaram por ter um profundo impacto em várias sociedades não europeias.
A violência não era seguramente um exclusivo da Europa, e tanto na Ásia como em África travavam-se guerras mortíferas que davam lugar a enormes vagas de refugiados. A diferença é que os refugiados africanos e asiáticos mantinham-se nos seus continentes
Com o século XIX a Europa enfrentou novos desafios. A revolução francesa lançou os ideais da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, mas ao avançarem pela Europa as tropas de Napoleão espalharam um outro tipo de ideal e Portugal foi um dos territórios invadidos e alvo de extensas pilhagens. A família real tornou-se refugiada no Brasil e o retorno da soberania não significou o fim da violência no reino.
Com o século XIX a Europa enfrentou novos desafios. As tropas de Napoleão espalharam um outro tipo de ideal e Portugal foi um dos territórios invadidos e alvo de extensas pilhagens. Menos sorte tiveram outros povos, como o irlandês, que, sujeito à ocupação britânica, ainda teve de enfrentar a grande fome de 1845-52
Desta feita era a política a dividir o país, rebentando uma guerra civil entre absolutistas e liberais que entre 1832 e 34 concluiu a destruição do país e levou centenas de milhares de portugueses a emigrar para o Brasil.
Menos sorte tiveram outros povos, como o irlandês, que, sujeito à ocupação britânica, ainda teve de enfrentar a grande fome de 1845-52 em que mais de dois milhões tiveram de se fazer ao mar e viajar até ao Canadá e aos Estados Unidos, mas um milhão e meio acabou por morrer na ilha e os sobreviventes tiveram de sobreviver como indigentes.