POLÉMICA KAVANAUGH

A democracia americana está em exibição

Christine Blasey Ford, a mulher que a América (e não só) queria ouvir Foto EPA

Christine Blasey Ford, a mulher que a América (e não só) queria ouvir Foto EPA

O caso Kavanaugh, o juiz nomeado por Donald Trump para o Supremo Tribunal dos EUA, chegou esta quinta-feira ao Senado. O juiz e a primeira das quatro mulheres que o acusam de condutas sexuais impróprias nas décadas de 1980 e 1990 foram ouvidas esta quinta-feira pela comissão de Justiça. Christine Blasey Ford prestou um depoimento emotivo: “Pensei que ele ia violar-me. (...) Estou aqui hoje não porque queira estar. Estou apavorada”. O que fará Kavanaugh?

Texto Hélder Gomes

“A democracia americana estará em exibição esta quinta-feira. A nossa nação deve defender a igualdade e a justiça mas, nos últimos tempos, muitas vezes não fez isso.” É desta forma que Janet Garrett, uma das candidatas democratas às eleições de 6 de novembro pelo estado de Ohio, antecipa ao Expresso as audiências do juiz Brett Kavanaugh e da professora Christine Blasey Ford, que o acusa de abuso sexual quando eram ambos adolescentes.

Perante a comissão de Justiça do Senado, com voz embargada e visivelmente emocionada, Ford disse que nunca esquecerá o que lhe aconteceu numa festa em Maryland em 1982. Os detalhes daquela noite “incrustaram-se na minha memória e têm-me ensombrado episodicamente na vida adulta”. “Não tenho todas as respostas e não me lembro tanto como gostaria”, confessou. No entanto, não hesitou em identificar Kavanaugh como “o rapaz” que a agrediu sexualmente, descartando qualquer sugestão de que pudesse estar a confundi-lo com outra pessoa.

Foto Reuters

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“Pensei que ele ia violar-me. Tentei gritar por ajuda. Quando o fiz, o Brett pôs a mão sobre a minha boca para me impedir de gritar. Isso foi o que mais me apavorou e teve o impacto mais duradouro na minha vida”, disse. “Estou aqui hoje não porque queira estar. Estou apavorada. Estou aqui porque acredito que é meu dever cívico contar-vos o que aconteceu comigo quando Kavanaugh e eu estávamos no liceu”, explicou. Quando questionada sobre os impactos que o caso lhe provocou, Ford enumerou: “Ansiedade, fobia, sintomas de stress pós-traumático, mais especificamente, claustrofobia e pânico”.

“NÃO FUI PERFEITO NO LICEU MAS ESTOU INOCENTE”

À hora de fecho desta edição ainda decorria a fase de interrogatório a Ford. No entanto, com base na declaração inicial já tornada pública, Kavanaugh irá reconhecer que não foi perfeito no liceu mas vai negar veementemente a acusação de Ford, declarando-se “inocente”. “Eu bebia cerveja com os meus amigos, normalmente aos fins de semana. Às vezes bebia demasiado”, admitirá. “Em retrospetiva, disse e fiz coisas no liceu que agora me fazem estremecer”, confessará, contrapondo em seguida: “Mas não é por isso que estamos aqui hoje. Aquilo de que fui acusado é muito mais sério do que mau comportamento juvenil”.

Kavanaugh não foi apenas acusado por Ford. No domingo, uma outra mulher, Deborah Ramirez, contou que foi vítima de conduta sexual imprópria pelo então colega, no ano letivo de 1983-84, quando era caloira na Universidade de Yale. “Lembro-me de um pénis estar à frente da minha cara”, contou à revista “The New Yorker”. Ramirez afirma ter sido ridicularizada e insultada, acabando por tocar nos órgãos genitais inadvertidamente enquanto tentava empurrar o homem para longe dela. Lembra-se de Kavanaugh de pé, à sua direita, a rir-se e a puxar as calças para cima, revelou ainda.

Brett Kavanaugh, o homem no epicentro das acusações FOTO EPA

Brett Kavanaugh, o homem no epicentro das acusações FOTO EPA

Na véspera das audiências, duas novas alegações. Julie Swetnick disse que Kavanaugh e os seus amigos adulteravam as bebidas das raparigas para as poderem violar. Ao ser revelada esta terceira acusação, o líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer, pediu a Kavanaugh que retirasse a sua candidatura ao Supremo. Já o senador republicano Cory Gardner recebeu uma carta anónima que acusava o juiz de ter agredido fisicamente uma namorada, não identificada, nos anos 1990. Kavanaugh considerou as mais recentes alegações “ridículas e vindas da Twilight Zone”.

“AS MULHERES ESTÃO FARTAS DESTE LIXO”

“As acusações são o ataque mais desprezível de sempre da esquerda americana. Não há provas absolutamente nenhumas que apoiem as acusadoras e todas as testemunhas nomeadas reforçam que Kavanaugh está inocente”, contesta ao Expresso o produtor e realizador de Los Angeles Robby Starbuck. “O envenenamento deste grande processo é uma vergonha e mostra o desespero dos democratas eleitos, que farão qualquer coisa para impedir um quinto juiz conservador no Supremo Tribunal de Justiça”, critica ainda. A consultora Michele Pyle não poderia estar mais em desacordo. “As mulheres em toda a parte estão fartas deste lixo e não são só as democratas”, conta ao Expresso a partir de Atlanta.

“Quando Trump perguntou no Twitter por que motivo Ford não chamou o FBI ou não contou aos seus ‘queridos pais’ o que lhe aconteceu, o nível de repugnância que as mulheres (e os homens que percebem o que é abuso sexual) têm por ele aumentou imenso”, disse Pyle. “O número de mulheres e raparigas agredidas sexualmente é muito maior do que o relatado. Contabilizaram as minhas três vezes? Não. Porque ninguém sabe delas e porque eu sou uma liberal declarada de 44 anos. Ninguém quer isso nos seus ‘inquéritos’”, acrescentou.

Foto Reuters

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PROCESSO “PROFUNDAMENTE DEFEITUOSO E TRUNCADO”

As audiências desta quinta-feira acontecem com o #MeToo, o movimento gerado contra o abuso sexual, como pano de fundo. Foi por isso que os 11 republicanos da comissão de Justiça do Senado, todos homens, entregaram as suas perguntas à procuradora Rachel Mitchell num esforço para, segundo eles, “despolitizar” a sessão.

“O processo é profundamente defeituoso e ficaremos muito aquém da verdade porque não explorámos as opções disponíveis. Devia ter havido uma investigação completa do FBI. Devíamos ouvir todas as testemunhas-chave, incluindo Mark Judge [oamigo de Kavanaugh que terá presenciado o ataque a Ford]. Devíamos ouvir todas as acusadoras”, sentenciou ao Expresso o antigo procurador federal Elie Honig.

Os republicanos agendaram para esta sexta-feira a votação de Kavanaugh para o Supremo. Quase todos se inclinam para a confirmação do juiz mas alguns deles fizeram depender o seu ‘sim’ das audiências. “Se dois senadores republicanos decidirem votar contra Kavanaugh, a sua nomeação é rejeitada. Esse é o melhor cenário para os democratas”, prognostica Honig, a partir de New Jersey. “Para os republicanos, o melhor cenário é o que estão a seguir, ou seja, manter este processo truncado, atropelar todos os factos e tentar apressar a confirmação.”

Christine Blasey Ford durante a sessão desta quinta-feira FOTO EPA

Christine Blasey Ford durante a sessão desta quinta-feira FOTO EPA

E SE KAVANAUGH NÃO FOR CONFIRMADO?

“Trump e os republicanos investiram muito capital político na nomeação de Kavanaugh e acantonaram-se. Parece claro que Trump o quer no Supremo por ele defender que um Presidente não pode ser indiciado, enquanto muitos republicanos o querem para limitar ou revogar a legislação sobre o aborto”, analisa ao Expresso o editor da “Rantt Media” Jossif Ezekilov. “Se esta nomeação falhar, será uma enorme perda para eles de várias formas. Mas mesmo uma nomeação bem-sucedida não aumentará muito as suas hipóteses nas eleições de novembro”, acrescenta o responsável da plataforma independente de notícias, a partir de Washington.

Durante a sua audiência, Ford garantiu que não se movia por interesses partidários, sublinhando não ser “o joguete de ninguém” e ouviu-se novamente que o FBI devia ter investigado os casos. Contudo, Robby Starbuck não tem dúvidas de que “os pedidos de investigação são uma ferramenta política velada para atrasar a confirmação até depois das eleições”. “Os democratas têm a esperança de reconquistar a maioria no Senado e manter esse lugar [no Supremo] refém durante dois anos”, ou seja, até ao final do mandato do Presidente, refere.

Trump tem defendido a sua escolha para o Supremo mas, na quarta-feira, admitiu pela primeira vez a possibilidade de mudar de ideias em relação a Kavanaugh. “Estamos a dar às mulheres uma grande oportunidade para falarem. É possível que, ao ouvi-las, eu diga: ‘Ei, mudei de ideias!’. É possível”, afirmou. No entanto, não fechou totalmente a porta ao juiz: “Temos um homem ótimo, notável, mas que tem acusações contra ele. Já me aconteceu muitas vezes”.

JUSTIÇA

Porque é tão importante o Supremo Tribunal americano?

O sistema judicial americano está hoje fortemente polarizado, e o símbolo máximo disso é o Supremo Tribunal Foto JIM WATSON / AFP / Getty Images

O sistema judicial americano está hoje fortemente polarizado, e o símbolo máximo disso é o Supremo Tribunal Foto JIM WATSON / AFP / Getty Images

Porque lá se decidem, com força de lei, muitas das questões sociais e políticas que dividem a sociedade americana. E com o sistema político cada vez mais bloqueado, às vezes é o que resta

Texto Luís M. Faria

Será desta que o aborto volta a ser ilegal nos Estados Unidos? Na altura em que o Senado se encontra prestes a aprovar (ou não) o juiz Brett Kavanaugh, é essa a esperança de muitos conservadores, em especial evangélicos. Se estes têm sido um dos grupos que fortemente apoia o Presidente americano apesar da sua vida pessoal pouco tradicional – onde não faltam aventuras com atrizes porno, por exemplo – é porque Donald Trump lhes prometeu desde o início que, se fosse eleito Presidente, só nomearia para o Supremo Tribunal juízes do tipo que eles gostam. Concretamente, juízes que interpretam a Constituição numa perspetiva “originalista”, i.e., à luz dos valores que existiam no tempo em que ela foi escrita.

O sistema judicial americano está hoje fortemente polarizado, e o símbolo máximo disso é o Supremo Tribunal. Na última campanha eleitoral americana, a maioria republicana no Senado recusou-se a confirmar, ou sequer a receber, o juiz que Barack Obama tinha nomeado para preencher a vaga deixada pela morte súbita do juiz Anthony Scalia, no início de 2016. Pela primeira vez desde que existe a comissão judiciária do Senado – criada em 1816 – um candidato ao Supremo não teve direito a ser ouvido e apreciado pelos representantes do povo. Essa quebra da tradição constitucional teve objetivos muitos específicos, e assumidos: evitar que o lugar antes ocupado por um conservador fosse preenchido com alguém de tendência mais à esquerda, ainda que moderado.

O bloqueio também serviu outro fim, relacionado com o anterior: animar as hostes republicanas a irem votar em Trump. Nas últimas décadas, o Supremo Tribunal tornou-se um palco privilegiado das lutas políticas no país. Ao dizer aos eleitores republicanos que o próximo juiz do Supremo devia ser escolhido pelo Presidente a eleger em novembro, o líder republicano no Senado, Mitch McConnell, dava-lhes um motivo suplementar para não ficarem em casa, lembrando quão vital é esse órgão de soberania para os muitos debates públicos que opõem democratas e republicanos – quer dizer, a esquerda e a direita.

Decisões que mudaram a sociedade

Não é por acaso que organizações dos mais variados tipos preparam durante anos um caso judicial que visa testar ou impor uma determinada solução legal, e que elas preveem poder acabar no Supremo Tribunal. Seja a respeito do aborto, do controlo de armas, dos poderes policiais, do casamento gay, do respeito pela religião, da separação entre religião e Estado ou do financiamento das campanhas eleitorais, as decisões do Supremo Tribunal, quando têm força geral de lei, podem mudar profundamente a sociedade. Geralmente, fazem-no reconhecendo evoluções que já estão em curso, mas ainda assim o tribunal é determinante.

O Supremo legalizou o aborto no país em 1973, mas 45 anos depois muitos americanos contrários a essa prática esperam que a possível chegada de Brett Kavanaugh ao tribunal produza finalmente a maioria conservadora sólida que permita revogar essa lei Foto Getty Images

O Supremo legalizou o aborto no país em 1973, mas 45 anos depois muitos americanos contrários a essa prática esperam que a possível chegada de Brett Kavanaugh ao tribunal produza finalmente a maioria conservadora sólida que permita revogar essa lei Foto Getty Images

Com o sistema político cada vez mais polarizado e as situações de bloqueio cada vez mais frequentes, o Supremo vem assumindo um papel substituto. Não é suposto acontecer, mas é assim. Para os republicanos, a culpa cabe à esquerda. A partir dos anos 1960, uma série de decisões do Supremo introduziu mudanças radicais na lei que muitos deles não aceitam, tendo criado todo um movimento político e social para as inverter. Uma dessas decisões legalizou o aborto no país em 1973. Objeto de contestação desde o início, os seus inimigos têm esperança de que a eventual ascensão de Brett Kavanaugh ao tribunal produza finalmente a maioria conservadora sólida que permita revogá-la.

Além dessa decisão, que dá pelo nome de Roe vs. Wade (todas as decisões são identificadas pelos nomes abreviados das duas partes em conflito), existem outras que ainda hoje têm direito a um lugar permanente na memória nacional, por razões positivas ou negativas. Entre elas:

* Dred Scott vs. Sandford (1857). Negou cidadania americana aos escravos e seus descendentes. Foi revogada depois da guerra civil que libertou os escravos, mas outras decisões posteriores recuperaram alguns dos seus efeitos perniciosos. Em 1896, por exemplo, Plessy vs. Ferguson declarou constitucional a existência de instalações públicas separadas para brancos e negros – o chamado “separado mas igual”, um princípio mais tarde aplicado na África do Sul do apartheid.

* Korematsu vs. United States (1944). Autorizou o governo do país a internar compulsivamente cidadãos americanos de origem japonesa durante a II Guerra Mundial.

* Brown vs. Board of Education (1954). Uma das decisões mais importantes na história do tribunal. Declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas. Seguiram-se outras decisões na mesma linha, incluindo Loving vs. Virginia (1967), que ilegalizou as leis que proibiam o casamento interracial.

* New York Times Co vs. Sullivan (1964). Impôs critérios particularmente exigentes em casos de difamação de figuras públicas, exigindo que, além de os factos serem falsos, o órgão de comunicação social ou outra entidade tenham agido com “malícia”, ou seja, intencionalmente. Em 1971, em New York Times Co vs. United States, um outro caso envolvendo o “New York Times”, o tribunal decidiu que a proibição prévia de publicar algo (estavam em causa documentos secretos do Pentágono sobre a Guerra do Vietname) só poderia ter lugar quando estivesse em causa um perigo “grave e irreparável”.

* Lawrence vs. Texas (2003). Invalidou uma lei que proibia o sexo homossexual por não respeitar o direito constitucional à privacidade. Em decisões posteriores, uma de 2013 e outra de 2015, ficou definitivamente estabelecido o direito ao casamento homossexual no país.

Em anos recentes, outras decisões têm suscitado grande polémica. Entre elas, District of Columbia vs. Heller (2008), que autorizou praticamente sem limites a posse de armas de fogo por cidadãos privados, e Citizens United vs. FEC (2010), que eliminou os limites ao financiamento de campanhas políticas por corporações privadas ou sindicatos. O afluxo maciço de dinheiro resultante desta última contribuiu para o crescimento da publicidade política e de ‘media’ pouco escrupulosos, ajudando a extremar ainda mais as posições políticas no país.