Estados Unidos

Sem McCain, “Trump fica mais protegido”

Foto Reuters

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Há quem considere que o ex-senador John McCain morreu como “um verdadeiro herói americano”. No entanto, mesmo as elegias mais laudatórias não esquecem o seu apoio à invasão do Iraque, o empurrão que deu a Sarah Palin e o caso de corrupção em que esteve envolvido no final dos anos 1980. No ocaso da vida, fez de Trump o seu alvo preferencial. E há quem veja na sua morte uma “oportunidade política” para os republicanos no Senado e no Supremo Tribunal

Texto Hélder Gomes

“John McCain será lembrado pelo seu serviço militar, pelo altruísmo como prisioneiro de guerra, pelo sentido de Estado enquanto senador e pela sua humildade em reconhecer que era americano em primeiro lugar e só depois republicano”, comenta ao Expresso o advogado Richard Hornsby. “Mas, como todos os americanos, tinha falhas que nos recordam que até os maiores servidores da causa pública nos EUA podem ser imperfeitos”, contrapõe, a partir de Orlando, no estado da Florida.

Assim tem sido a maioria das reações ao desaparecimento do antigo prisioneiro de guerra no Vietname: elogiosas do seu caráter mas sem esquecer as suas falhas. McCain morreu no sábado, aos 81 anos, no seu rancho no Arizona, com a mulher, Cindy, e outros membros da família ao seu lado. Naquele estado do sudoeste americano, foi senador durante mais de três décadas, disputou a presidência do país com Barack Obama, em 2008, e tornou-se um dos mais ferozes críticos de Donald Trump, ao ponto de deixar claro que não queria o atual Presidente no seu funeral.

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A 25 de julho do ano passado, pouco depois de lhe ser diagnosticado um cancro, McCain falou no Senado naquele que foi interpretado como o seu discurso de despedida. Nele, exortou os seus camaradas republicanos a enfrentarem Trump e pediu a todos os congressistas que trabalhassem juntos para manter a América como um “farol de liberdade” no mundo. “Foi um dos poucos republicanos proeminentes que estavam dispostos a manifestar a necessária oposição aos abusos de Trump”, diz ao Expresso o politólogo e sociólogo DaShanne Stokes.

“A sua morte cria uma oportunidade política para o Presidente dos EUA e os seus fervorosos apoiantes colocarem um legalista pró-Trump no Senado”, alerta. De facto, McCain ocupava um dos 50 assentos republicanos na câmara alta do Congresso americano, sendo os restantes 50 ocupados por 47 democratas, dois independentes e um que permanece vago. O governador do Arizona, o governador Doug Ducey, indicará um membro do seu partido para suceder a McCain, após o funeral deste, que só irá acontecer no domingo.

TRUMP VS. MCCAIN

O novo senador deverá facilitar a vida aos republicanos na confirmação do juiz conservador Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal. McCain não votou por se encontrar já muito doente. Por outro lado, prossegue Stokes, fica a via aberta para “o apoio à agenda perigosa de Trump”. Sem McCain para lhe fazer frente, o Presidente fica “também mais protegido da possibilidade de vir a ser responsabilizado pelas leis que jurou defender e talvez até mesmo da destituição”, analisa.

Este domingo, as bandeiras da Casa Branca estiveram a meia-haste. No Twitter, Trump endereçou as suas “mais profundas condolências e respeito” à família de McCain, sem, no entanto, acrescentar quaisquer elogios ao senador. Em sentido oposto, todos os cinco antigos Presidentes vivos, de Jimmy Carter a Barack Obama, homenagearam McCain. Não é de estranhar: o senador atacou Trump pelas loas que este teceu ao Presidente russo Vladimir Putin e a outros “tiranos” estrangeiros, como lhes chamou. A conferência de imprensa dos líderes americano e russo, em Helsínquia, ainda no mês passado, foi descrita por McCain como “uma das mais vergonhosas prestações de um Presidente americano de que há memória”.

“O que é notável é que, poucas semanas depois de lançar a sua campanha presidencial em junho de 2016, Trump desferiu um inusitado ataque a John McCain. De forma inequívoca, disse que este não era um herói de guerra porque foi capturado”, recorda o gestor de relações públicas Russell Schaffer. “Este deveria ter sido o fim da campanha para Trump mas surpreendentemente os eleitores republicanos pareceram concordar e isso tornou Trump ainda mais forte. Para mim, foi o primeiro sinal de que algo na política americana estava realmente a mudar para pior”, lamenta ao Expresso, a partir de Nova Iorque.

CORRUPÇÃO, PALIN E INVASÃO DO IRAQUE

Mas talvez McCain também tenha contribuído, até certo ponto, para o início dessa viragem. “O seu envolvimento no escândalo de corrupção ‘Keating Five’ [no final dos anos 1980] e a escolha de Sarah Palin como a sua parceira de campanha, que muitos acreditam ter trazido a política radical de direita para o mainstream americano, serão sempre mencionados em qualquer discussão sobre o seu impacto geral na vida americana”, nota o advogado Richard Hornsby.

No caso dos cinco senadores acusados de ajudarem indevidamente Charles Keating e a instituição financeira Lincoln Savings and Loan, cuja falência custou 3,4 mil milhões de dólares aos contribuintes, McCain foi ilibado de irregularidades mas não se livrou de uma reprimenda do Comité de Ética do Senado. Quanto à antiga governadora do Alasca, McCain teve ocasião de se redimir num recente livro de memórias, mostrando-se arrependido por não ter escolhido o então senador Joe Lieberman, um democrata que se tornou independente, em vez de Sarah Palin.

E se, por um lado, foi um dos falcões que apoiou a invasão do Iraque em 2003 pelo então Presidente George W. Bush, por outro, manifestou-se contra a prática do “waterboarding”, ou seja, a simulação de afogamento amplamente considerada tortura, e de outras táticas extremas de interrogatório usadas após os ataques de 11 de setembro de 2001. Apesar da complexidade do homem, a escritora Farrah Alexander não hesita em dizer que McCain “foi um herói americano que serviu corajosamente o seu país durante toda a vida”. “É admirado por democratas e republicanos porque foi um exemplo de decência e patriotismo”, escreve ao Expresso a partir de Louisville, no Kentucky.

UM PARTIDO DE “FACILITADORES E BAJULADORES”

Apresentando-se ainda como uma “teimosa conservadora”, a texana Brittany Pounders explica ao Expresso os motivos por que deixou de ser militante do Partido Republicano. “Houve muitos momentos durante os meus anos de republicana em que McCain me deu azia. E mesmo ao ver o partido transformar-se numa sombra irreconhecível do que era, com a qual eu já não tinha nada em comum, nunca fui tão grande fã de McCain como nos últimos anos. Ele tornou-se parte de uma espécie em vias de extinção de pessoas que dizem a verdade no seio de um partido cheio de facilitadores e bajuladores”, diz.

“McCain manteve-se forte nos seus derradeiros dias para lembrar aos americanos que representamos algo maior do que as visões tacanhas e pugilistas de Trump. Quando o último capítulo da sua vida for escrito, a História mostrará que, quer estivesse a lutar contra o comunismo no exterior, quer estivesse a combater a ascensão do Trumpismo em casa, John McCain foi sempre um verdadeiro herói americano”, sentencia o advogado Richard Hornsby.

McCain combateu os comunistas durante a Guerra do Vietname. O seu avião foi abatido em 1967, partindo os dois braços e uma perna na sequência da queda. Foi apunhalado e torturado, sofreu de disenteria e passou anos na prisão de Hoa Lo (conhecida como “Hanoi Hilton” entre os soldados americanos). Na hora da sua morte, o embaixador do Vietname nos EUA lembrou esta segunda-feira que o senador “não apenas contribuiu ativamente para os laços” entre os dois países, como “era um amigo do Vietname e conquistou o amor do povo vietnamita a vários níveis”.