Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Os ódios globais
Black Mirror”, a série de ficção científica da Netflix que daria para tantos textos como os seus episódios, acaba a sua última temporada com “Ódio Nacional”. É uma reflexão pessimista – como todas as anteriores – sobre as manifestações virais. Uma colunista humilha, num artigo seu, uma deficiente e transforma-se em mais um ódio viral nas redes sociais. Ao aparecer morta, a polícia entra em campo. Acaba por descobrir um jogo viral e macabro em que, através da utilização de um hashtag, o povo em fúria determina, mesmo sem o saber, a morte diária de alguém até às 17h00. Como se consuma cada execução não vos conto, para não estragar a história. Apenas ficam a saber que em cada dia há um ódio diferente. A colunista, o rapper que despreza uma criança que o idolatra, a jovem que finge urinar sobre um memorial de ex-combatentes. Até chegar ao primeiro-ministro e o poder entrar em pânico. O assassinato real é a metáfora para os assassinatos de caráter que os ódios virais provocam e em que, de forma mais ou menos intensa, já todos participámos.
Este mês, foram duas as vítimas globais do assassinato viral de caráter. O primeiro foi Robert Kelly, académico, que dá aulas na Universidade de Busan, na Coreia do Sul. Estava o professor, via Skype, a comentar em direto para a BBC a demissão da Presidente sul-coreana quando entrou de rompante no escritório uma menina de 4 anos. E depois o irmão, de andarilho, com oito meses. O homem, atrapalhado com a situação, tentou empurrar a criança. Foi salvo por uma asiática esbaforida que os arrastou, de gatas, para fora do quarto.
Uma situação banal, sem qualquer interesse a não ser para vir a entrar numa qualquer compilação de momentos ligeiros em telejornais, correu mundo e tornou-se num dos vídeos mais vistos dos últimos meses. A partir daí, e confesso o meu espanto, o julgamento foi feito. Ele era agressivo com a criança. A asiática, que obviamente era uma ama com medo de perder o emprego, era subserviente para com ele e bruta para com os miúdos. Afinal, a asiática era Jung-a-Kim, sua mulher e mãe das crianças e, como é óbvio, o homem estava apenas aflito. A própria ideia de que uma asiática só poderia ser empregada diz quase tudo sobre o preconceito. Felizmente, Robert Kelly teve meios para se defender, e o tema rapidamente se tornou apenas uma piada inofensiva.
Robert Kelly, el profesor que se volvió #VIRAL dio su primera entrevista desde el incidente LINK: https://t.co/Gbd5DGnI8g pic.twitter.com/la8T5XTQqR
— RR Noticias (@RRNoticiasqro) March 15, 2017
Não fossem os esclarecimentos do fotógrafo, a mulher muçulmana que passava na Ponte de Westminster não teria a mesma sorte. Foi uma das imagens mais partilhadas do dia. Um cadáver, um grupo de pessoas aparentemente britânicas em torno dele, uma muçulmana de hijab passa ao lado, a olhar para o telemóvel. Uma imagem excelente para provar a insensibilidade de toda uma religião perante a vida e a morte. Uma muçulmana transformada em “monstro” nas contas de twitter de extrema-direita e de muitos incautos. Sabemos que a primeira condição para que ódio religioso, racial ou outro ganhe dimensões realmente perigosas é convencermo-nos que o outro não é dotado dos mesmos sentimentos que nós. Que não é bem humano. A forma como tanta gente achou que aquela foto poderia ser uma ilustração geral de mais mil milhões de pessoas é a demonstração de que os muçulmanos já foram desumanizados por muitos.
O fotógrafo veio lamentar a interpretação feita e foram divulgadas outras fotos, da mesma sequência, onde é visível a expressão de horror e consternação da transeunte. Mas ainda que essa expressão não existisse, como podemos nós julgar os sentimentos de alguém por uma expressão, por um momento fixado dessa expressão? A verdade é que a utilização da imagem, parecendo ser uma prova, legitima os julgamentos rápidos baseados nos preconceitos. O que torna ainda mais fácil a manipulação.
O instinto mais primário torna-se viral e ganha o estatuto de discurso político maioritário. Nada mais fácil de manipular. Basta uma foto de uma muçulmana que passa ao lado de uma vítima de um atentado a olhar para o telemóvel. Sem contexto, sem pausa para pensar, o mundo é de todos os Trump
A utilização deste tipo de imagens serve agendas políticas óbvias. Mas a maioria das pessoas, quando partilha estas fotos e vídeos e as comenta e julga os seus protagonistas, responde apenas a um imediatismo irrefletido. E é nesse imediatismo irrefletido que se tornam evidentes todos os preconceitos. Nisto, não há nada de novo. O problema é que o preconceito automático dos nossos reflexos imediatos tem hoje efeitos totalmente novos. Ele repete-se, multiplica-se e fixa-se como discurso hegemónico através da repetição e partilha imponderada nas redes sociais, sem que ninguém se sinta responsável por isso. E deixa de ser imediato para se prolongar no tempo. E deixa de ser irrefletido para, de tantas vezes repetido, ser um discurso legitimado por o que aparenta ser um consenso. Esse é um dos perigos da inexistência de mediadores e da ilusão de debate e discurso que o burburinho nos dá: o instinto mais primário torna-se viral e ganha o estatuto de discurso político maioritário. Nada mais fácil de manipular. Basta uma foto de uma muçulmana que passa ao lado de uma vítima de um atentado a olhar para o telemóvel. Sem contexto, sem pausa para pensar, o mundo é de todos os Trump.