Daniel Oliveira

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

A lição ainda não acabou

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Não foi pela importância que, mal ou bem, o futebol tem na vida portuguesa que a crise do Sporting tomou conta de grande parte do espaço mediático. Eu próprio, que sempre fiz questão de separar o espaço de análise política a que aqui me dedico das minhas opiniões sobre o futebol, já escrevi três ou quatro vezes sobre o assunto nas edições diárias e semanais do Expresso. Porque há, como sublinhei AQUI, uma dimensão política e cívica nesta crise. Ela dá-nos, se tivermos o cuidado de sublinhar o que é muito particular ao mundo dos clubes, imensas pistas sobre o que o futuro nos pode reservar na política. Espero, no entanto, que este venha a ser o último texto que aqui escrevo sobre o Sporting. Seria sinal de normalização.

No sábado, os sócios do Sporting puseram ponto final ao mandato de um presidente que se barricou dentro do clube, não permitindo que acontecesse o que era óbvio para quase todos os observadores, participantes ou não: uma clarificação que permitisse uma relegitimação do seu poder ou a sua saída. Teimou em ignorar a mudança radical de circunstâncias (criadas por si) que, como se viu, reduziram drasticamente a sua base de apoio.

O que assistimos nos últimos meses dá-nos imensas lições. De como um poder democraticamente eleito se pode tornar autoritário, subvertendo as regras formais, destruindo os laços comunitários de que a democracia precisa para respirar e ultrapassando todos os limites de civilidade de que a vida em comum depende. O Sporting transformou-se, nos últimos meses, numa espécie de laboratório de tudo o que pode correr mal na política. Apesar de sportinguista, só posso dizer que ainda bem que o experimentámos num clube e não no país.

Entre as muitas lições que já tínhamos recebido, os resultados de sábado deram-nos uma suplementar: que as redes sociais são uma bolha virtual com pouca ou nenhuma relação com a realidade. Nelas, é tão fácil simular maiorias como no meio da gritaria e das vaias num pavilhão cheio de gente. Aliás, a tática usada pelos apoiantes de Bruno de Carvalho no Altice Arena foi em tudo semelhante à que usaram nas redes sociais: agir de forma coordenada para o cerco e perseguição de qualquer voz dissonante com vista ao seu silenciamento e desistência. E só no silêncio do voto, como era evidente que sucederia para quem esteve nas filas e ouviu as conversas mais serenas entre sócios banais, é que a vontade da maioria se conseguiu impor à gritaria agressiva da minoria. Esta não é uma lição nova mas tem de estar sempre a ser recordada: a democracia participativa é fundamental e as redes sociais podem ser úteis ao debate, mas sem o voto tudo não passa de uma falsificação. E o voto foi contundente: 64% dos eleitores (a que corresponderam 71% dos votos) queriam a destituição de Bruno de Carvalho. E esperaram por aquele momento seguro para o dizer com todas as letras.

A tresloucada despedida que Bruno de Carvalho deixou no Facebook confirmou quase tudo o que escrevi sobre ele: o clube existe, na sua cabeça e nas dos seus apoiantes mais fanatizados, à medida do líder e apenas nos contornos que ele deseja. É o clube que deve merecê-lo, não é ele que deveria, como presidente, merecer o clube. É o clube que o desilude, não foi ele que desiludiu aqueles que o elegeram. Ele precede a instituição e os seus sócios. Nesta matéria, a história de Bruno de Carvalho é uma história milhares de vezes repetida. É a história do fim patético de quase todas as ditaduras carismáticas.

O maior sinal de maturidade que os sócios poderiam dar seria, depois de recusarem o ditador, recusarem quem lhes queira tirar as rédeas do Sporting. Quanto a Bruno de Carvalho, que se candidate para entreter a comunicação social. O debate sobre o futuro do clube não o inclui

Mas quando grande parte dos sportinguistas suspiravam de alívio e os seus indefetíveis rasgavam cartões e pediam-lhe que fundasse um clube só para eles, tudo voltou atrás. O homem que não era mais do Sporting Clube de Portugal, que não ia regressar para as bancadas nem vibrar com as vitórias, que achava que o Sporting tinha "falsos princípios" e "falsos valores" e que não sentia qualquer honra em tê-lo servido dizia, 14 horas depois, que afinal se ia recandidatar. Depois de escrever o que nem os presidentes do Benfica ou do FC Porto alguma vez disseram sobre o Sporting, anuncia a sua candidatura. E também diz ainda que vai impugnar a assembleia-geral. O que, se corresse bem, tornaria improvável a sua recandidatura. É cada vez mais difícil acompanhar os raciocínios delirantes de um homem que já só anda a mil à hora. Que Bruno de Carvalho se candidate para entreter a comunicação social. O debate sobre o futuro do clube não o inclui. Ele faz parte do passado, como a maioria dos sócios deixou bem claro.

Haverá muitas matizes, mas há, fora do cada vez mais reduzido grupo de apoiantes Bruno de Carvalho, dois pontos de vista: os que, mesmo reconhecendo muitos erros, se reveem no essencial do que foram os vinte anos antes de Bruno de Carvalho e que, na prática, encaminham o clube para uma total empresarialização onde os sócios não terão um papel central (o modelo dos grandes clubes ingleses); e os que, opondo-se ao estilo de Bruno de Carvalho e ao que sucedeu nos últimos meses, desejam resgatar o conteúdo do seu primeiro mandato e têm como prioridade manter a maioria do clube no capital social da Sporting SAD, como acontece no Benfica e no FC Porto. Estou convencido de que os segundos estão em clara maioria. A questão é se os nossos principais clubes continuarão a ser um espaço de associativismo – com as particularidades que têm uma área que me mexe com milhões – ou se se resumem definitivamente ao negócio, deixando a sua sobrevivência de depender da vontade dos associados mas apenas dos interesses circunstanciais dos acionistas. O que acontecer ao Sporting, nesta matéria, acabará por ser determinante para os outros clubes. Até tem, quando estamos a falar das maiores associações do país, consequências que ultrapassam o futebol e o desporto.

Nunca tive qualquer ingenuidade. Houve quem se movesse contra Bruno de Carvalho pelos atropelos à democracia e pelo clima insustentável que criou no clube, tão mortal para o associativismo como a sua total empresarialização. Foram a maioria dos sócios. Mas no meio do combate ao ditador há, sempre houve, interesses que ultrapassam os dos sócios. E a consciência disso foi o que manteve muitas pessoas aparentemente sensatas a dar um apoio crítico a Bruno de Carvalho.

Isto quer dizer que a lição que no sábado foi dada ainda não acabou. Do meu ponto de vista, cabe aos sportinguistas dizer que ao recusarem um ditador não abdicaram de ter controlo sobre a SAD, onde se tomam quase todas as decisões relevantes para o clube. Que a recusa de um clube tutelado por umas poucas pessoas ou totalmente alienado aos sócios não exige lideranças musculadas que não respeitam as regras. Que não estão condenados a escolher entre o poder absoluto de um ditador e o poder absoluto de uns investidores. Ainda mais quando, como sabemos, os interesses desse poder financeiro são bem menos recomendáveis do que a busca do lucro. O maior sinal de maturidade que os sócios poderiam dar seria, depois de recusarem o ditador, recusarem quem lhes quer tirar as rédeas clube.

Se, durante este processo, os sócios perdessem o controlo do clube isso significaria uma vitória de tudo o que Bruno de Carvalho representa. Porque foi isso mesmo que ele andou a dizer todo este tempo: que sem ele os sócios não conseguiram manter o controlo da SAD. Que havia um golpe contra ele para roubar o Sporting aos sócios. Se tal se confirmasse, a conclusão desta lição era terrível: sem a mão firme de um ditador uma comunidade é derrotada pelos interesses. É isso, entre outras coisas, que estará em causa a 8 de setembro. Dá para perceber que ultrapassa em muito o futebol e o Sporting.

Estou convencido – mas posso estar enganado – de que a maioria dos sócios do Sporting não quer regressar ao passado, revê-se no essencial do primeiro mandato de Bruno de Carvalho, quer que o clube mantenha a maioria do capital social da SAD e dispensa mais demagogos. A derrota, em 2013, de vinte anos de um projeto ruinoso para o Sporting, os 90% de Bruno de Carvalho em 2017 e os 71% que votaram esta destituição parece-me coerente com esta leitura. Bruno de Carvalho resultou de um cansaço com uma cultura elitista no clube. O sentimento está lá, quem tente reavivar essa cultura voltará a chocar com ele. A não ser, claro, que as asneiras de Bruno de Carvalho tenham dado a esse elitismo a legitimidade para regressar. Não creio.

As três grandes prioridades de uma nova direção são: resolver o imbróglio das rescisões, defender a maioria do clube na SAD e voltar a unir o Sporting, que sai bastante traumatizado destes quatro meses – e mais dois faltam com as rábulas do ex-presidente. Depois, é não atirar fora o bebé com a água do banho, deixando claro que não se querem nem ditadores nem oligarcas. Quer-se um clube dos sócios, com modalidades e as bancadas cheias. Se a 8 de setembro os sportinguistas conseguirem isto terão dado uma enorme lição ao país. Que a democracia não é sinal de fraqueza, é a melhor forma de defender o que é nosso.