Investigação

Angelina Jolie, Omidyar, xeque do Qatar: o gabinete oculto do procurador Ocampo

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As ligações polémicas do ex-procurador do Tribunal Penal Internacional Luís Moreno Ocampo, que pedia conselhos e iniciativas não a membros do tribunal que chefiava mas a estrelas do cinema e figuras do jet set internacional

Texto Stéphanie Maupas, Mediapart (rede EIC)

Após nove anos no cargo, o argentino Luis Moreno Ocampo, procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), prepara-se para fazer as malas. Estamos na primavera de 2012. Ocampo decide concluir o processo da Palestina. Três anos antes, a Autoridade Palestiniana tinha exigido uma investigação sobre os crimes da ocupação israelita. O procurador nunca pediu aos juízes que resolvessem as espinhosas questões jurídicas postas pelo caso. E não é à sua adjunta, Fatou Bensouda, nem ao seu gabinete de imprensa que ele pede conselho sobre como anunciar o arquivamento. Mas sim a Angelina Jolie.

"Na terça-feira, vou decidir que o Gabinete não pode investigar os alegados crimes na Palestina", escreve Ocampo à estrela americana, explicando as razões jurídicas. "Os líderes palestinianos compreendem e respeitam a minha decisão. Os israelitas também acham bem. A questão é como apresentar isso às pessoas normais". Ocampo acrescenta: "Anexo a decisão que vou tomar. É confidencial". Não será o segredo mais bem guardado do mundo. "Angie" fala com o seu próprio conselheiro, que vê ali uma oportunidade para explicar as complexidades legais que o Tribunal enfrenta ao apresentar acusações de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

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Há mais pessoas importantes a aconselhar o procurador. Segundo documentos obtidos pela Mediapart e analisados em conjunto com a European Investigative Collaborations (EIC), estrelas, lobistas, empresários e outros incentivam a política criminal do jovem tribunal. Entre eles encontra-se uma das três mulheres do emir do Qatar, q Xeque Moza, o chefe do eBay, Pierre Omidyar, com a mulher, Pamela, a ONG Invisible Children, George Clooney...

Todos eles gravitam nos corredores das Nações Unidas, de Washington e de Silicon Valley. Cooptam-se mutuamente, utilizando as suas fortunas, o seu poder e as suas redes. Viajam de avião como quem apanha o metro. Habituaram-se a consertar o mundo nas praias do Hawai. Sentem uma atração, às vezes excitada, por países falhados. Sonham com um mundo melhor, arriscando-se a construir um "admirável mundo novo".

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Quando chegou ao tribunal, em 2003, o argentino já tinha um grosso livro de endereços, compilado nos tempos em que alegava no Tribunal de Buenos Aires e presidia à filial latino-americana da ONG Transparency International. Esse livro, naturalmente, expandiu-se durante o mandato no TPI (2003-2012). Ocampo pode não ser homem para passar horas a examinar os processos, mas gere brilhantemente as suas redes.

Favores políticos em troca?

Na primavera de 2012, Thomas Lubanga, ex-líder de um movimento rebelde no Congo, é condenado no TPI por crimes de guerra. Embora seja o primeiro veredicto do tribunal estabelecido dez anos antes, o julgamento esteve longe de ser exemplar. Os testemunhos de ex-crianças-soldado congolesas foram invalidados, e durante o julgamento Ocampo recusou-se duas vezes a cumprir as ordens dos juízes, sem consequências.

Thomas Lubanga Foto getty

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Mas o procurador não se preocupa com esses detalhes. Regressado do Qatar, dá uma conferência de imprensa onde explica que conheceu a Xeque Moza, uma das três mulheres do emir, tendo entregue o seu processo à organização dela, Education Above All (EAA). "Não apenas as provas, mas toda a informação que tínhamos sobre como as escolas são afetadas", diz. O procurador anuncia para o outono uma grande conferência que reunirá os ministros da educação dos Estados membros do TPI. Um projeto para o qual deseja um triunvirato: Ocampo, a fundação Jolie-Pitt, e a Xeque Moza.

A xeque Moza Foto getty

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Na sua primeira visita ao emirato, em 2009, como convidado do Fórum de Direito do Qatar, Ocampo trouxe de volta um Rolex. Embora esse presente do emir acabasse por entrar no Fundo do Tribunal dedicado às vítimas, o facto de o procurador o ter aceitado é uma surpresa. Ocampo voltará frequentemente a Doha em nome de um "interesse comum na educação" com a xeque Moza, segundo um dos comunicados de imprensa do Tribunal.

Em fevereiro de 2012, um dos seus assessores pedirá conselhos ao protocolo do Qatar sobre a organização de uma pequena viagem ao deserto do procurador com o seu filho.

Fatou Bensouda Foto getty

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Ocampo apresenta personagens do jet set, muitas vezes a pedido deles, à sua então adjunta e mais tarde sucessora. Três meses após assumir o cargo, Fatou Bensouda é a ilustre convidada do Education Above All numa conferência em Nova Iorque. Curiosamente, a fundação da xeque Moza aconselha o gabinete do procurador na sua política criminal em relação a crianças-soldado. (E no entanto, o país há muito governado pelo seu marido não ratificou ou sequer assinou o tratado do TPI. Em termos diplomáticos, a mensagem é clara: Doha não adere aos objetivos do tribunal).

Ao mesmo tempo, Luis Moreno Ocampo entra no conselho de curadores da Fundação do Qatar. O ex-procurador não é pago, simplesmente reembolsado por despesas, mas pede o financiamento de projetos educacionais na Colômbia, na Bósnia, no Uganda, no Congo e em outros lugares. Os riscos inerentes a essa política manifestam-se em 8 e 9 de julho de 2017. Numa visita "privada" ao Qatar, Fatou Bensouda encontra-se com o emir e o ministro dos Negócios Estrangeiros, e a agência oficial do Qatar anunciou que a procuradora lamenta o bloqueio decretado no início de junho contra o irritante pequeno emirado.

Segundo a agência, Bensouda denunciou as violações dos direitos humanos cometidas pelos quatro países - Arábia Saudita, Egito, Bahrein e Emirados Árabes Unidos - que acusam o seu vizinho de apoiar o terrorismo. As notícias espalham-se rapidamente nas redes sociais, e Bensouda tem de se defender. Num comunicado de imprensa, nega qualquer declaração política e recorda que atua de forma independente. Terá caído numa armadilha?

A indústria do “salvador branco”

Não é apenas o Qatar a mostrar um forte interesse no TPI. Em 2005, este emitiu cinco mandados de prisão contra os líderes do Exército de Resistência do Senhor (LRA), a aterradora milícia dirigida por Joseph Kony, então ativa no norte do Uganda. Tentativas de negociar a paz falharam, e em 2010, por instigação de duas ONG americanas, a Invisible Children e a Enough Project, Washington envia mais de cem assessores para seguir o rasto de Kony – igualmente uma boa forma de o exército dos EUA também implantar bases militares na área.

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Em abril de 2012, a Invisible Children lança a operação Stop Kony. Num vídeo de 30 minutos onde o chefe da organização aparece com o seu filho, o conflito ugandês é descrito em tom ultra-simplificado e paternalista. Em poucas horas o vídeo torna-se viral na internet, e surgem críticas. "A indústria que cresce mais rapidamente nos EUA é o complexo industrial do salvador branco" comenta um tweet. A Invisible Children vende posters e t-shirts de Kony a estudantes, pequenos caçadores de prémios agora convidados a pôr o rosto do inimigo público número 1 nas paredes das suas cidades.

Ocampo não se distancia. Pelo contrário, aconselha a ONG californiana e oferece a sua ajuda para mobilizar os embaixadores do Uganda, da República Centro-Africana e do Congo nas Nações Unidas. Durante o seu mandato no TPI, não conseguiu montar a sua própria equipa para apanhar os fugitivos, apesar do apoio – moderado - de alguns estados. Mas agora compromete-se sem reservas com iniciativas privadas paralelas, que estão fatalmente sujeitas a conflitos de interesse.

Sugere à Invisible Children trabalhar com Angelina Jolie. "Ela tem a ideia de convidar Kony para jantar e então prendê-lo", diz-lhes. "Brad apoia, vamos discutir a logística". Em 2014, depois de visitar a sede da Invisible Children em San Diego, Ocampo oferece-se para ajudar a angariar fundos. Embora a Fundação Xeque tenha a ver sobretudo com educação, "pode financiar operações de prisão à sua maneira", acrescenta.

“Ativar” Hillary Clinton

Também a fundação Bridgeway, ligada a uma empresa de fundos de risco no Texas, participa nessa caça privada a Kony. A sua diretora, Shannon Sedgwick Davis, recorre aos serviços de ex-mercenários sul-africanos da Executive Outcomes, empresa de triste memória em Angola e na Serra Leoa. Além de Kony, ela está interessada em apanhar o chefe de milícia congolês Bosco Ntaganda, procurado pelo Tribunal.

Bosco Ntaganda Foto Getty

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Em Janeiro de 2011, Ocampo discute estratégia com Sedgwick Davis e Pamela Omidyar, mulher do fundador do eBay e chefe da Humanity United. Propõe "ativar" Hillary Clinton, e mais tarde refere conversas mantidas com os presidentes do Ruanda e do Congo.

A seguir fala com Catherine Mackinnon, feminista radical e professora universitária que faz de um grupo de especialistas externos empenhados em aconselhar o procurador. "Posso contactar uma mulher que foi violada por Bosco durante um mês e se encontra nos EUA. Quer que o nosso escritório fale com ela?", sugere a professora. "Deve ficar claro que você não a está a entrevistar para o Gabinete", responde Ocampo. "Se divulgar a situação no início de dezembro, podemos prender Bosco".

Em 2013, abandonado pelo seu padrinho ruandês, Bosco Ntaganda rende-se e vai a julgamento em Haia. Os amigos de Ocampo nada tiveram a ver com isso.

“Lixar alguns bandidos”, diz Clooney

Os sonhos da aventura vão mais longe. Na hierarquia dos mandados de prisão do Tribunal, o Presidente sudanês, Omar Al Bashir, é um alvo muito "na moda".

Omar Al Bashir Foto Getty

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No início da guerra civil em Darfur em 2002, lobistas neoconservadores e evangélicos convencem o então presidente George W. Bush a dar luz verde a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para levar a questão ao TPI. Em 2009 e 2010, o tribunal emite dois mandados de prisão contra o chefe de Estado sudanês, por crimes contra a humanidade e genocídio.

Pierre Omidyar Foto reuters

Pierre Omidyar Foto reuters

Um empresário também queria prender o suspeito. Pierre Omidyar, fundador e dono do eBay, reúne-se várias vezes com o “advogado mundial” desde 2009. A 54ª fortuna do mundo tem um projeto: recompensar lugar-tenentes que forneçam provas contra assassinos em massa de alto nível. Omidyar e outros "salvadores brancos" próximos do procurador sonham com mudanças de regime, mas não têm mandato democrático. Retiram a sua legitimidade da sua riqueza e das suas redes.

O caso de Darfur estimula George Clooney. Com John Prendergast, ex-conselheiro de Susan Rice no Departamento de Estado dos EUA, cria o Satellite Sentinel Project (SSP) para seguir a partir do céu os crimes cometidos no Sudão e Sudão do Sul. "O nosso pequeno satélite vai lixar alguns bandidos", disse Clooney. "Será ótimo inventar um sistema global que faça toda a gente sentir-se vigiada", sonha Ocampo.

George Clooney com John Prendergast Foto Getty

George Clooney com John Prendergast Foto Getty

Em 2015, Clooney deixa o Sentinel para lançar o The Sentry. Desta vez, quer seguir o rasto das fortunas dos senhores da guerra. Entra em cena uma empresa chamada Palantir, fundada em 2004, na atmosfera pós-9/11, e avaliada em 20 mil milhões de dólares. Os seus clientes incluem a CIA, o FBI, a NSA, a força aérea dos EUA e, desde o outono de 2016, os serviços secretos franceses. Também faz "engenharia filantrópica", prestando serviços ao Centro Carter, ă Fundação Clinton e a outros, incluindo The Sentry.

Ameaças a um diplomata na ONU

O ex-procurador também tem lá as suas entradas. Ao ex-diplomata britânico Gavin Hood, que foi funcionário do TPI antes de se juntar ao discreto gigante de Silicon Valley, sugere ajudar o Tribunal a analisar as comunicações intercetadas de uma milícia no leste do Congo. Por sua parte, John Prendergast tenta obter informações confidenciais de Ocampo sobre os registos financeiros e bancários do regime sudanês.

Há anos em contato com o procurador, Pam Omidyar também sugere alguns alvos. Pede-lhe para acusar Ali Osman Taha, o vice-presidente do Sudão. "Não pode ao menos dizer que vai abrir a investigação sobre Taha? Como ameaça?". Em relação a Omar Al Bashir, Pam Omidyar também pergunta "qual é fator decisivo que o retira do poder e leva para Haia?". O seu apoio à justiça é intransigente. Ela acha "assustador que a justiça seja ignorada" a troco da "paz transitória". Nesse momento, o casal Omidyar tem acesso à Casa Branca, ao Departamento de Estado dos EUA e aos lobbies mais influentes deste jet set global. Estará a ser picado pelos seus consultores improvisados?

Em 5 de junho de 2012, reportando perante o Conselho de Segurança da ONU, Ocampo ameaça o embaixador sudanês de o acusar como cúmplice em crimes contra a humanidade. O diplomata estava a pôr em causa o seu relatório. Essa forma extrema de intimidação deixa muitos observadores sem voz. O tribunal vê-se novamente reduzido ao papel desprezado de ferramenta e brinquedo político. Mas através de Ocampo, uma parte do jet set global conseguiu a ilusão de trabalhar para um mundo melhor. A estrada para o inferno é pavimentada com boas intenções.

PS: Para as estrelas e os lobistas que precisam de um mundo melhor, o fundo fiduciário para vítimas relacionadas com o TPI tem uma conta bancária em dólares, com o endereço Swift ABNANL2A e o código IBAN: NL87ABNA0538621176.