Construam-me, porra!
O mais relevante não é o orgulho com que dizem que aquele “é o maior lago artificial da Europa Ocidental”. O mais importante é não haver ninguém que não reconheça que a paisagem mudou radicalmente. A agricultura de sequeiro foi sendo lentamente substituída pelo regadio, com produção intensiva. Isto levanta preocupações quanto à sustentabilidade dos solos, mas não deixa de ser extraordinário ver herdades abandonadas a serem lentamente ocupadas por olival, amendoal e vinha, por vezes com exageros que justificadamente preocupam ambientalistas, autarcas e populações locais, que não ganham assim tanto com esta intensidade. O erro da monocultura pode estar a ser repetido e não há investimento com bons resultados se o Estado desiste de regular a ocupação dos solos. Mas que o Alqueva mudou o Alentejo, mudou.
E mudou a paisagem urbana. Um barqueiro que veio de Almada para São Pedro do Corval há três anos, mas que já conhecia a região, diz-me que em Reguengos só havia um hipermercado e hoje todos os grupos lá têm uma grande superfície. Multiplica-se o alojamento local e Monsaraz, que já era uma atração turística, tornou-se num verdadeiro polo económico. Pequenas empresas que organizam atividades náuticas e especializam-se na observação das estrelas. Nos bons restaurantes é preciso fazer reservas em agosto. É estranho sentir alguma prosperidade em partes do amargurado Alentejo.
Claro que o Alqueva não chega. Há autarquias como a de Reguengos de Monsaraz que soube aproveitar o que tinha e esta oportunidade e onde a evolução é evidente, há autarquias como as de Moura, que demorou anos a reagir e o impacto mais evidente foi mesmo a perda das terras inundadas. Em toda a região a população continua envelhecida, os empregos continuam a ser escassos, o despovoamento continua a ser a regra. A agricultura intensiva dá dinheiro às empresas mas emprega pouca gente, apenas sazonalmente e em trabalho desqualificado. As vantagens do turismo sentem-se muito lentamente. Não chega o investimento na obra pública, é preciso o trabalho de planeamento que tem de vir depois. E mesmo quando se tenta ter cuidado as coisas podem falhar, como foi o caso da recolocação da Aldeia da Luz, inundada pelas águas do Alqueva.
Com todas as falhas e dúvidas, da insustentabilidade da agricultura intensiva ao pouco impacto no emprego, o Alqueva, onde se escreveu um enfático “construam-me, porra!”, mudou e pode mudar muito mais o Alentejo. E mostrou que as grandes obras púbicas continuam a ser indispensáveis para o nosso desenvolvimento económico
Não há milagres apesar de muitos os terem prometido. Mas uma coisa é certa: com anos de seca da última década, se não houvesse Alqueva o Alentejo estaria a passar por uma tragédia. A possibilidade de 13 concelhos que somam mais de 200 mil pessoas poderem aguentar quatro anos consecutivos de seca extrema é a diferença entra a tragédia e a esperança. Mesmo sabendo-se que a EDIA, empresa pública que explora a barragem, pratica preços impossíveis para muitos agricultores.
O Alqueva, onde estive de férias durante dez dias (se alguma vez pensei ir para o interior alentejano em pleno agosto), tropeçou nas crises e foi sendo adiada desde 1975. Até que, no tempo das vacas gordas, Cavaco e Guterres a fizeram avançar. Havia um consenso político em defesa de obras púbicas estruturantes que ajudavam a economia durante a sua construção e que qualificavam o país para o futuro. Até que o discurso austeritário se tornou, ainda antes da última crise, na nova ética política. E, a partir de 2009, investimento público passou a ser sinónimo de desperdício, de Sócrates, de bancarrota.
Hoje, a qualidade do turismo paga o preço de uma campanha contra a construção do novo aeroporto (que não se ficou pela contestação da localização na Ota), e o país está desligado da Europa pela sabotagem ao TGV. Com todas as falhas e dúvidas, da insustentabilidade da agricultura intensiva ao pouco impacto no emprego, o Alqueva, onde se escreveu um enfático “construam-me, porra!”, mudou e pode mudar muito mais o Alentejo. E mostrou que as grandes obras púbicas continuam a ser indispensáveis para o nosso desenvolvimento económico. Pelo menos para quem não acompanha o deslumbramento cretino nas startups tecnológicas nascidas por milagre da iniciativa individual de empreendedores geniais no meio de um deserto produtivo.
Esta coluna regressa a 3 de setembro