Ricardo Costa

Opinião

Ricardo Costa

Isto não é não jornalismo

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Uma das decisões mais banais e corriqueiras do jornalismo assenta nas escolhas que se fazem no dia a dia. Que temas se abordam, que destaque se dá a este ou aquele assunto, que ângulos de abordagem se usam. São opções condicionadas por uma série de fatores - que vão do interesse e da novidade até questões tão básicas como o haver ou não jornalistas com tempo, meios e conhecimentos para o fazerem -, que estão e estarão na base de qualquer dia de trabalho numa redação.

Essa é a questão de partida para o atual discussão sobre os trabalhos que a SIC fez sobre a Operação Marquês, com a acusação concluída e, portanto, fora do âmbito do segredo de justiça. Perante a divulgação da acusação mais grave da nossa democracia, que cruza a maior falência bancária do pós-25 de Abril e o colapso da joia da coroa da bolsa portuguesa, o que devem os jornalistas fazer?

Não estou a perguntar o que deve a Justiça fazer nem o que devem os políticos fazer. A justiça deve correr o seu tempo, assente em várias fases processuais e em recursos fundamentais. A política, essa, deve fazer as escolhas que quiser, sendo que uma delas pode ser ignorar que um ex-primeiro-ministro está acusado de uma série de crimes gravíssimos, num processo que envolve o banqueiro privado mais relevante do nosso período democrático e alguns gestores idolatrados.

Se é claro que a justiça não tem de fazer escolhas e que a política se pode escudar nas regras da justiça para justificar as suas omissões, é igualmente claro que os jornalistas têm a obrigação de fazer escolhas. Uma das mais habituais é não fazer nada. Como me ensinaram há muitos anos, editar é escolher. Naturalmente, escolher não fazer nada é sempre uma opção.

Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade

Mas não fazer nada de jeito, nada de relevante, nada de fundo sobre a Operação Marquês é mesmo uma opção jornalística? Deve mesmo tratar-se este caso como todos os outros ou como as questões do momento que vão e voltam? Ou, neste caso, é uma profunda e determinada opção de não jornalismo?

É mesmo uma opção editorial dedicar mais recursos e tempo a falar dos dramas do consumo do abacate ou do futuro da mobilidade urbana do que da Operação Marquês? A pergunta é demagógica e capciosa, porque qualquer jornal, site, rádio ou televisão fazem dezenas de escolhas diárias em paralelo e umas não anulam as outras. Mas a resposta não é demagógica nem capciosa: não, não deve ser opção editorial não dedicar um esforço sério a este caso. Infelizmente foi a de muitos jornalistas e redações, que se esconderam na confortável sombra de um manto que explica tanto o tempo da justiça como o silêncio tático da política.

Os jornalistas não são juízes nem políticos. Não se devem confundir com eles. Mas não podem usar as limitações ou as hesitações daqueles como argumentos para a sua confortável inação, que, no limite, redunda numa profunda incompetência ou inutilidade.

Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes (...) é um erro gravíssimo considerar que este caso é apenas um assunto judicial. É judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo

Quando, no final do ano passado, a acusação deste processo saiu tive necessidade de a ler. São quatro mil páginas, que todos os jornalistas das áreas de política, economia ou nacional deviam obrigatoriamente ler. Felizmente trabalho numa redação onde vários jornalistas se deram ao trabalho de a ler. Os que acompanham a Operação Marquês há anos e anos fizeram-no de forma sistemática e profissional. No fim dessa leitura, decidimos, em conjunto, que se deviam fazer várias reportagens que enquadrassem jornalisticamente o que ali estava, tal é a gravidade e dimensão daquele documento. Podia ser feito de várias maneiras, mas escolhemos três ângulos: as entregas de dinheiro, a casa de Paris e o saco azul do GES.

Acho estranho que muitos tenham preferido a não-escolha. Perante o caso judicial mais grave da nossa democracia e a falência bancária que mais dinheiro leva aos contribuintes, reduziram este caso a um assunto judicial. Ora este é um erro gravíssimo, porque este caso é judicial, é político, é financeiro, cruza toda a nossa sociedade. A justiça deve fazer justiça e os jornalistas devem fazer jornalismo. Não dedicar tempo e recursos a este caso é uma omissão jornalística que, na minha opinião, não tem perdão nem justificação.

Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos

Há um tempo para a justiça, há um tempo para a política (?) e há um tempo para o jornalismo. O tempo do jornalismo, neste caso, está a correr há alguns anos, e corre de forma urgente desde que a acusação foi produzida. Não dar aos leitores, espectadores ou ouvintes trabalhos de fundo sobre a Operação Marquês é anular o papel dos jornalistas numa democracia. É decretar um intervalo de uma década até que o caso transite em julgado. Nessa altura levantam o cordão sanitário e fazem um ar de espanto com o que esteve sempre à frente dos seus olhos. Talvez, então, batam com a mão no peito e se encham de coragem para fazer de carro vassoura da 25ª hora . Boa sorte.

O trabalho da SIC levou quatro meses a fazer. A meio desse trabalho, um dos jornalistas envolvidos - e os três (Sara Antunes de Oliveira, Amélia Moura Ramos e Luís Garriapa) acompanham a Operação Marquês desde o início - teve acesso a material dos interrogatórios. Para quem não saiba, os interrogatórios são gravados em áudio há muitos anos e, entretanto, começaram a ser gravados em vídeo. Todos os advogados sabem isso; os que não sabem são incompetentes. Este argumento só não é inútil porque, espantosamente, alguns colegas meus resolveram desenterrar o argumento de que os acusados da Operação Marquês e os seus advogados não sabiam que estavam a ser filmados. Sabiam, mas isso é irrelevante para a questão de fundo.

O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante

Perante aquele material - que está nas mãos de dezenas e dezenas de pessoas ligadas ao processo -, tivemos várias discussões sobre se devíamos ou não usar alguma coisa e, em caso afirmativo, que critérios devíamos ter em conta. Convém explicar que a esmagadora maioria das frases relevantes - sejam as obtidas através de escuta, sejam as dos interrogatórios - já tinham sido divulgadas na acusação, que não está em segredo de justiça, ou em vários trabalhos de jornais e até da SIC. A questão que se colocava era, do ponto de vista jornalístico, a do uso da imagem e, consequentemente, do direito à imagem dos acusados num ambiente negativo, perante juízes de instrução, procuradores ou inspetores tributários.

O direito à imagem é fundamental numa democracia. Como é o direito à informação. O que coloca, por vezes, estes dois direitos frente a frente é o interesse público. Não vejo - foi essa a conclusão a que chegámos internamente na SIC -, nenhum caso onde o interesse público seja mais relevante. Como o interesse não justifica tudo, decidimos que só devíamos usar frases fundamentais para a compreensão da investigação, expurgadas de qualquer coisa que fosse da esfera privada ou íntima, gratuita, jocosa ou acessória. As reportagens foram editadas e reeditadas tendo isso em conta, cruzando a opinião de várias pessoas. Além disso, decidimos usar apenas imagens de acusados (e não de arguidos ou testemunhas), exatamente porque este caso já tem uma acusação pública. Abrimos uma única exceção para Francisco Machado da Cruz, o contabilista que geria o saco azul do BES/GES, por considerarmos o seu testemunho fundamental à explicação da maior falência dos nossos tempos.

A mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça

Já sabia que o peso da imagem é desproporcionado no nosso espaço público, sobretudo junto das elites. Mas é estranho ver um jurista como João Taborda da Gama defender que ver pequenos excertos de interrogatórios é pornografia judicial, quando aquelas declarações já foram publicadas por escrito ou recriadas (com outras vozes ) em vários órgãos de comunicação social e não o fizeram corar. Ou seja, a pornografia é, aos seus olhos, um conceito que assenta na imagem - e não no conteúdo. Livros pornográficos, agora, só sem bonecos. Filmes pornográficos, tudo bem desde que sejam dobrados num espanhol lúbrico; no original é que não. Lido, até passa. Visto e a cores, faz corar. Pois, a mim, a Operação Marquês fez-me corar quando li, quando ouvi e quando vi. Corei de vergonha da nossa democracia, da política que finge que não se passa nada e do jornalismo ao retardador ou que não faz o seu trabalho para não atrapalhar a justiça.

Isto não é jornalismo, escreveu Vicente Jorge Silva. É sim, Vicente. Isto é um reality show, sublinhou Vicente. Tem razão, mas o reality show não é o jornalismo, é a vida de José Sócrates. E é sobre esse reality show (que só não digo ser pornográfico para não acordar o Taborda da Gama que talvez tenha dentro de mim) que a SIC fez um trabalho jornalístico. É nesse equívoco profundo que assenta a análise de Vicente Jorge Silva. O objeto do trabalho, esse sim, era um reality show.

(...) só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos

Este jornalismo, Vicente, não é um reality show, como não é um pedaço de “cinéma verité” nem uma versão uncut. É jornalismo por estar editado, enquadrado e escolhido, expurgado do acessório, gratuito ou privado. Por ser feito por pessoas que acompanham o caso desde o início, jornalistas altamente especializados, que leram tudo o que existe no processo, que já falaram com os envolvidos, que sabem distinguir o trigo do joio, que fazem escolhas, que editam e enquadram. Que fazem reportagem na rua, que fizeram dezenas e dezenas de trabalhos sobre este caso, que têm fontes, que contam histórias. Esta história só é maior e mais feia do que as que o jornalismo hoje nos contam. O não jornalismo é o que muitos (não) fazem sobre um caso que conheces mal e devias conhecer melhor. Porque foste jornalista e porque, episodicamente, foste deputado. Preferes só conhecer a história da Operação Marquês no fim? É uma opção, mas não para jornalistas. Isso é para historiadores e arqueólogos.

A luta pela liberdade de imprensa e pelo direito à informação nunca acaba. E cruza-se, sempre, com outros direitos, num difícil equilíbrio que está na base de qualquer democracia. O jornalismo não pode abusar das suas prerrogativas, mas tem que ter sempre presente a sua missão principal, que é a de informar. A SIC fê-lo, preservando totalmente as testemunhas e arguidos irrelevantes (exceto o contabilista do GES/BES), focando-se nos acusados e usando apenas excertos que são centrais ao processo. Tudo isto num caso que foi (é) a maior ameaça à nossa democracia. Um primeiro-ministro acusado de corrupção passiva? Sim, é um caso extremo de defesa da democracia.

A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os nossos deveres

António Barreto não valoriza este ponto, achando que a justiça ou a política podem ser condicionadas por um trabalho destes, com traços excecionais. Não pode, a justiça seguirá o seu rumo, a política o seu ziguezague encadeado. António Barreto venceu um dos casos mais relevantes de direito à liberdade de expressão, contra o tenebroso Manuel Maria Carrilho. Fez bem em pisar o risco naquele artigo de opinião porque, ao ganhar o caso na justiça, mostrou o valor da liberdade da opinião. A SIC fez uma escolha difícil no processo que existe contra Sócrates. Não é um processo qualquer, é um onde a nossa democracia está em causa. Estamos cientes das nossas responsabilidades, mas não esquecemos os nossos deveres.

Não é preciso ir à “Aeropagitica”, de Milton, nem a Stuart Mill para aprofundar este ponto. António Barreto conhece-os de cor. Podíamos ir a casos célebres ou antigos para ver onde se mexeu a fronteira entre o direito à imagem e à privacidade vs. liberdade de informação. Fico só nos mais recentes. Wikileaks, Snowden, Panama Papers, Malta Papers, Football Leaks. Algum documento foi obtido de forma legal? Quantos violavam sigilo fiscal, bancário ou mails privados? O wikileaks estava pejado de piadas de salão de diplomatas americanos sobre os países onde estavam colocados. Os casos recentes de pessoas pagas pelo saco azul do GES violam quantos direitos? Vários, mas em todos estes casos o direito à informação se sobrepôs e os jornalistas souberam usá-los com cuidado e rigor.

O meu amigo Pedro Marques Lopes resolveu, num arroubo adjetivo, dizer que o trabalho da SIC era nojento. Não, Pedro, não é nojento. Nojento é uma palavra que deve ser usada com cuidado. E neste processo todo já há protagonistas de sobra à altura do adjetivo que agora lanças ao vento. Uns pelo que fizeram, outros pelo que calaram, outros ainda pelo não jornalismo que deliberadamente fazem.

Isto não é não jornalismo. Como ex-gestor, Pedro, sabes seguramente que uma dupla negativa resulta num valor positivo. Como nunca foste jornalista, não percebes isso, muito menos as dúvidas que nos assolam ou o que nos move. Quando o caso fechar, juntar-te-ás aos arqueólogos, historiadores e jornalistas de última hora, vais ler os livros que se vão lançar e assistir aos colóquios que se vão fazer em todo o país sobre o caso do século. Eu estarei numa fila lá atrás, ao lado dos meus colegas que assinaram estes trabalhos enquanto esbracejavas indignado. Nessa hora deixaremos a pista aos outros, aos que só pisam terreno confortável. Terás lá o teu lugar e, estou certo, encontrarás um adjetivo à altura.

Este artigo é escrito na qualidade de diretor de informação da SIC