BRASIL

Lugar da mulher é onde ela quiser, mas Marcela é que tem sorte: é “bela, recatada e do lar”

A BELA E A NADA BELA A revista “Veja” incendiou as redes sociais brasileiras com a publicação do perfil de Marcela, a mulher do vice-presidente Michel Temer, por oposição à imagem de Dilma Rousseff. Na imagem, as duas na tomada de posse do segundo mandato de Rousseff FOTO EVARISTO/AFP/GETTY

A BELA E A NADA BELA A revista “Veja” incendiou as redes sociais brasileiras com a publicação do perfil de Marcela, a mulher do vice-presidente Michel Temer, por oposição à imagem de Dilma Rousseff. Na imagem, as duas na tomada de posse do segundo mandato de Rousseff FOTO EVARISTO/AFP/GETTY

A política tem caminhos ínvios e, num país atolado em controvérsia, com opiniões em ponto de bala, a mais recente polémica é sobre uma mulher “bela, recatada e do lar”. Uma “quase primeira-dama”, que prefere vestidos pelo joelho mas cuja voz é um mistério. “No Brasil, os ataques de género são transformados em ataques políticos”, lamenta Joana Mortágua, do BE. O Brasil, já disse Tom Jobim, não é um país para iniciantes

TEXTO CHRISTIANA MARTINS

Dentro de três semanas, Michel Temer poderá passar de vice a Presidente do Brasil. Ao seu lado estará Marcela, 43 anos mais nova, discreta, loura, branca. Muito distante da imagem de Dilma Rousseff, que, nesta altura, será, como ela própria disse, “carta fora do baralho”. Muito distante também da imensa maioria da população feminina brasileira: mestiça, trabalhadora, sem opção para ficar no remanso de casa. Foi talvez por essa incomensurável distância que muitas mulheres brasileiras levantaram-se nos últimos dias, enchendo as redes sociais de ironias, contestações e, sobretudo, recusando o papel de fada do lar.

Anunciada pela “Veja” — revista brasileira com uma circulação superior a um milhão de exemplares — como “quase primeira-dama”, Marcela Temer é apresentada no texto como uma jovem que começou por desfilar em fato de banho em concursos de beleza e que aos 20 anos casou-se com o primeiro namorado, 43 anos mais velho.

Marcela, 32 anos, é bacharel em Direito, mas nunca exerceu a profissão, e, no artigo, é considerada uma mulher “de sorte”. Os seus dias “consistem em levar e trazer Michelzinho — o filho de sete anos — da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas duas semanas foi duas vezes ao dermatologista tratar da pele)”. E o marido, há oito meses, até teve tempo para a levar a jantar fora! Um homem que, diz a “Veja”, “continua a lhe dar provas de que a paixão não arrefeceu com o tempo nem com a convulsão política que vive o país e em cujo epicentro ele mesmo se encontra”.

“Mar”, como é conhecida, terá comparecido ao primeiro encontro com Mi, como ela trata o marido, acompanhada da mãe. Prefere vestidos na altura dos joelhos, dedica-se a cuidar do filho e da casa e tem como sonho dar uma filha a Michel Temer. O casal não comentou a matéria. Marcela, aliás, não comenta. A sua voz pública é praticamente ausente. Mas a esperança de alguns brasileiros é grande: afinal, como diz a “Veja”, citando um cabeleireiro, “Marcela tem tudo para se tornar a Grace Kelly” tupiniquim.

MODELO Os dias em que Marcela desfilava em fato de banho FOTO EDGARD CASTELUN / GETTY IMAGES

MODELO Os dias em que Marcela desfilava em fato de banho FOTO EDGARD CASTELUN / GETTY IMAGES

Política de género

“O conservadorismo tem vindo a avançar no Brasil e não só, mas, no Brasil, os ataques de género são transformados em ataques políticos. Não vemos nenhum homem ser atacado por ser esganiçado ou por ter instabilidade emocional”, afirma a deputada Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda. Para ela, “o problema deste perfil não é o de Marcela ser assim, mas o de a 'Veja' dizer que é uma mulher de sorte, porque tem um marido rico, cuida do filho e até tem um bocadinho de tempo para si. O problema é impor isso como um exemplo para as outras mulheres, porque esta não é uma questão individual e é muito difícil não fazer uma leitura política deste texto”, sublinha a parlamentar portuguesa.

Em 2001, no dia da tomada de posse, Marcela já havia “roubado a cena” a Dilma Rousseff, pelo que, na altura, foi classificado em vários órgãos de comunicação social como “elegância, juventude e discrição”. Há dois anos, quando se iniciava o segundo mandato, a comparação entre os vestidos semelhantes das duas mulheres foi também comentada. Mas o verniz estalou agora, com a atual presidente à beira da destituição, com Michel Temer e Marcela prestes a chegarem ao Palácio da Alvorada.

Mas o Brasil é atualmente um país profundamente dividido e este caminho promete levantar grande polémica. E muitas mulheres não concordam com o aumento do conservadorismo representado por Michel Temer e pelo seu partido, o PMDB. Já no fim do ano passado, milhares de mulheres desceram as ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo para pedir o afastamento de Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados, contra as suas opções profundamente conservadoras, nomeadamente o projeto da sua autoria que limita o acesso à pílula do dia seguinte em hospitais públicos para mulheres que tenham sido violadas.

E, apesar de surgir associado às reivindicações feministas, o movimento de contestação não ficou restrito a esse reduto. Muitas brasileiras que contestaram o perfil de Marcela Temer publicaram nas redes sociais imagens no local de trabalho. Outras privilegiaram fotografias em que a sensualidade era explícita. Investigadores brasileiros também já alertaram para a componente política da polémica, já que que a figura feminina representada por Marcela Temer contraria claramente a imagem da presidente Dilma Rousseff.

ELEGÂNCIA Marcela no dia em que Dilma tomou posse - foi no primeiro mandato, em 2011 FOTO EDGARD CASTELUN / GETTY IMAGES

ELEGÂNCIA Marcela no dia em que Dilma tomou posse - foi no primeiro mandato, em 2011 FOTO EDGARD CASTELUN / GETTY IMAGES

Votar em homenagem à tortura

A semana brasileira começara com a polémica declaração do deputado Jair Bolsonaro, votando na Câmara dos Deputados a favor da destituição de Dilma Rousseff e evocando o nome do primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como tendo sido responsável por torturas durante a ditadura. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim” – disse Bolsonaro, em meio a vaias e aplausos.

Na manhã desta terça-feira, Dilma – que foi torturada por Ulstra – comentou a afirmação de Bolsonaro: “Eu fui presa nos anos 1970. De facto, conheci bem esse senhor a que ele se referiu. Foi um dos maiores torturadores do Brasil, contra ele recai não só a acusação de tortura, mas também de mortes”, disse.

Em 2014, o mesmo Bolsonaro já havia dito que não estupraria outra deputada porque ela era demasiado feia. Mas os limites parecem ter sido ultrapassados no cenário político brasileiro por representantes de todos os quadrantes. Recentemente, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva também disse que as mulheres do Partido dos Trabalhadores eram de “grelo duro”, aparentemente numa referência à opção sexual das mesmas.

O Brasil, já disse Tom Jobim, não é um país para iniciantes. É difícil de entender. Passaram-se quase 80 anos e foi-se o tempo em que o samba “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, exaltava as virtudes das fadas do lar. Em 1942 não havia pudor em se apontar uma mulher submissa e abnegada: “Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia é que era mulher de verdade / Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que comer / E quando me via contrariado / Dizia: Meu filho, que se há de fazer”. E muito mudou, por mais marcha atrás que o país possa fazer.