DESPORTO

Longa vida ao Rei

AINDA AQUI ESTOU Totti tem 39 anos. Fará 40 em setembro. Mas quem é que está a contar? FOTO ALESSANDRO DI MEO/EPA

AINDA AQUI ESTOU Totti tem 39 anos. Fará 40 em setembro. Mas quem é que está a contar? FOTO ALESSANDRO DI MEO/EPA

Totti entrou ao minuto 86, marcou dois golos e a Roma venceu por 3-2. É assim que se constroem os mitos

TEXTO PEDRO CANDEIAS FOTOS ALESSANDRO DI MEO/EPA

A idade de um tipo também se mede pelos ídolos que tem e eu já não tenho muitos no ativo. Seria estranho dizer-vos que o Ronaldo e o Messi são os meus ídolos, porque vi-os crescer e um homem não vê os ídolos a crescer, mas cresce a vê-los a jogar.

Os meus ídolos não são muito diferentes de outros adeptos que nasceram mais ou menos no tempo em que eu nasci. O Maradona, o Gullitt, o van Basten, o Cantona, o Zidane, o Figo, o Ronaldo original, o Rui Costa, o Maldini, ou (e porque os gostos não se discutem) o Redondo.

Hoje, todos os meus ídolos passaram do prazo e estão naquela fase da vida, a do prefixo, que se cola ao futebolista quando o corpo cede ao tempo: o ex-número 10, ex-avançado, o ex-extremo, o ex-defesa. O ex-jogador. O “ex”. Isso faz de mim um “ex-fã”. Pior, faz de mim mais velho.

Por isso (e por muitas outras coisas mais) é que gosto tanto do Totti. O Totti é a minha fonte de juventude, o meu “E.T”, o meu “Indiana Jones”, ou, para ser fiel ao tema, o meu “Cocoon”. Ao pé do Totti serei sempre um puto, porque ele é eterno como só os reis são. Pode ir nu, pode ser morto e depois posto, que um rei será sempre um rei. Podem depô-lo, tirá-lo do campo e criticá-lo, que um rei será sempre um rei. Mesmo que alguns pensem o contrário.

Acreditem, o Luciano Spaletti, treinador durão que passa a vida no ginásio, já tentou roubar-lhe o trono, duas vezes nos últimos quatro dias, e das duas vezes saiu por baixo – e a Roma por cima. Contra a Atalanta, no domingo, saltou do banco e fez o empate. Contra o Torino, ontem, entrou ao minuto 86, 22 segundos depois marcou um golo, e dois minutos e meio depois marcou outro. Estava 2-1 para o Torino antes do Totti entrar em campo. Estava tudo mal sem o Totti, ficou tudo bem com o Totti.

E o debate voltou a instalar-se: o que é que o Spalletti tem contra ele; e será que o Spalletti é capaz de ir contra ele.

Como matar um mito

Totti tem 39 anos e fará 40 em setembro. Ainda não disse se deixa o futebol ou não, mas o Leicester e a liga norte-americana parecem interessados em resgatá-lo, porque a carreira na Roma parece estar a chegar ao fim. Spaletti tem razão: Totti está mais pesado, corre menos e aquela pose majestosa não ajuda. Diz-se (diz Spaletti) que Totti joga cartas até às tantas, que faz da noite a metade do seu dia, e que isso não é admissível nem a um miúdo. Está nos livros. Para manter o poder, o treinador tem de controlar a estrela e o tipo mais influente do balneário (muitas vezes, são o mesmo), e tem dois métodos para lá chegar: conquistá-lo ou encostá-lo.

O problema é que Spalletti e Totti já se conhecem de antes, do tempo em que o técnico e o jogador se elogiavam mutua e publicamente. Aliás, foi Spalletti que um dia pôs Totti a jogar como ponta-de-lança, em 2005. Spalletti foi e voltou, e Totti nunca saiu do sítio. Está onde tudo começou para ele.

Totti foi sempre de Roma e da Roma, mas as coisas podiam ter sido diferentes se a mãe não o tivesse obrigado a recusar o AC Milan e um seccionista da AS Roma não tivesse aparecido na casa dos Totti para convencer o rapaz a fechar os olhos à Lazio.

Os românticos agradecem a ambos pelo que se seguiu: estreou-se com 16 anos (1993) pela Roma; tornou-se o capitão mais jovem da história da Serie A (1998), o melhor marcador no ativo da Serie A, e o segundo maior goleador da história da Serie A – está a 27 golos de Silvio Piola, que marcou 274 golos entre 1929 e 1954, por cinco clubes diferentes.

Nos seus melhores dias, Totti era o futebolista mais completo do planeta. Podia ser extremo, número 10 e ponta-de-lança, rematava com violência com qualquer um dos pés, marcava golos de cabeça, assistia e defendia. E tinha o físico duro e musculado para sustentar este talento.

Aviso a Spaletti: não é fácil encostar um peso-pesado. É verdade que há precedentes, como Raul, do Real Madrid, só que Raul foi melhor do que Totti, mas não foi maior do que Totti. O italiano tem aquela coisa que não se explica, o carisma, que irradia de tipos como Cantona e Ibrahimovic, que conseguem sair de uma rixa ou de uma troca de insultos como entraram: intocáveis.

Totti é como Cantona e Spalletti tem um dilema para resolver: como é que se mata o mito de um clube, o xamã de uma cidade, o macho alfa de uma equipa, à frente de toda a gente? Não se mata. Espera-se que ele se suicide, que caia no ridículo.

O problema é que isso não é um problema para Totti. Ele gosta de se expor ao ridículo, está consciente do que tem e do que não tem: um grande pontapé, um bom intelecto.

O tonto que manda

Francesco Totti é gozado em Itália. O dialeto romano, a aparição no Big Brother, o casamento com a show girl Ilary Blasi, ou aquela vez em que foi apanhado nos apanhados a perder-se de amores por uma rapariga – tudo isso contribui para o boneco do bom palerma. Ele não se importa. Aliás, aprendeu a ser visto assim e até tem um anedotário em nome próprio. Chama-se “Tutte le barzellette su Totti raccolte da me”, tradução livre: “Todas as anedotas do Totti recolhidas por mim.” Recolhidas por ele.

Este livro mais não é do que uma coletânea de parvoíces contadas por Totti. Leiam esta: “Totti [na terceira pessoa, como convém] tenta acabar um puzzle. Demora quatro meses. Depois, vira a caixa e lê: ‘Dos dois aos três anos’. ‘Eh, pá! Então sou um génio!!!!’”

Totti aproveitou a imagem de tonto que passa nas entrevistas que dá e nas entrevistas que os colegas dão por ele e escreveu as “barzellette”. Vendeu mais do que a biografia de Ibrahimovic e de Alessandro Del Piero e o dinheiro foi inteirinho para a Unicef. É este lado genuíno e ingénuo que os italianos, sobretudo os romanos, adoram.

E é também por isso que eu gosto dele. Longa vida ao Rei.