Opinião
Pedro Santos Guerreiro
A Caixa e a aldeia onde o morto matou o vivo
Na Aldeia da Pena conta-se a história do morto que matou o vivo e há uma explicação nada sobrenatural para isso. Já lá vamos. Antes, cheguemos à Pena, vindos de São Pedro do Sul, e desçamos o caminho exíguo e íngreme até ao vale onde as casas xistosas se organizaram em torno de um riacho. Não há lá bancos, claro. Nem telefone, nem estação de correios, nem forma de levantar pensões de reforma, que são as únicas que ainda poderiam ser levantadas. Não há quase nada. Nem quase gente. Não é só na Aldeia da Pena, aqui dado como exemplo absurdo: é em aldeias, vilas, cidades do país inteiro em que o declínio é consentido como fatalidade, como se não existisse a opção política de contrariá-la. E por isso perguntamos: onde vai a Caixa fechar balcões?
A notícia é do verão mas passámos o outono a exigir declarações de rendimentos e o inverno a pedir SMS. Chegando à primavera, olha, a Caixa vai despedir para cima de dois mil e encerrar cento e oitenta balcões. Um em cada quatro. Onde? A Caixa não disse ainda. Mas já sabe. E nós suspeitamos. Pelo critério da rentabilidade, não há muito que enganar. Menos dez balcões em Lisboa não significa um décimo do que um fecho no interior.
O país que se equilibra entre o discurso do tem-de-haver-cortes e o discurso de os-cortes-não-podem-ser-cegos está normalmente sentado em Lisboa. A desconsideração que tem pelo resto do país não é maldade, é só desconhecimento, que tenta compensar com a estatística. E mesmo que essa estatística revele uma desigualdade brutal, um empobrecimento acelerado e uma desertificação (primeiro económica, depois populacional, quase desde sempre cultural), é ainda assim só uma estatística. Mas quem vive nessas aldeias, vilas e cidades vai desaguando no litoral, deixando a vivência por sobrevivência. Nessas aldeias não há crianças, nessas vilas não há lojas, nessas cidades não há indústrias, não há emprego, não há crédito, não há quem venda porque não há a quem vender. Mas há impostos porque disso o Estado não se esquece. Mas há estradas vazias porque de cimentá-las o Estado não se esqueceu. À entrada de todas essas estradas há uma seta a apontar para a saída: para a autoestrada que leva à cidade maior.
O encerramento de balcões da Caixa Geral de Depósitos é apenas mais uma tábua de madeira neste caixão. Os critérios de gestão são totalmente aceitáveis, a Caixa tem de tornar-se rentável para devolver aos contribuintes os estapafúrdios valores lá “injetados”. Acontece que a Caixa é do Estado e há cem razões para a Caixa ser do Estado. Uma é assim haver ao menos um banco português. Mas se nenhuma dessas razões é a Caixa ser um banco dos portugueses, então o Estado “acionista” é mesmo só um acionista.
É um erro básico de interpretação, julgar que numa economia liberal o Estado não serve para nada. Serve para corrigir desequilíbrios de mercado, abusos de posição dominante, falhas de concorrência e serve para garantir territorialidade, correção de desigualdades, incluindo a desigualdade de oportunidades. E é simples: a Caixa tem de ser subsidiada pelo Estado para manter balcões seus onde não há balcões de outros, como a CP tem de ser subsidiada pelas linhas ferroviárias não rentáveis mas essenciais à territorialidade. Um país cheio de terras onde tudo vai fechando não é um país, é o que resta dele. É um enigma que se resolve com exclusão.
O encerramento de balcões da Caixa é uma medida de racionalização que perde a razão se abandonar os territórios pobres. É um banco realmente português se não serve os portugueses?
Quando o plano da Caixa estiver concluído, em 2020, quase catorze mil pessoas terão perdido o emprego na banca em Portugal em dez anos. Dez mil deles estavam nos grandes bancos: de 2011 até 2016, saíram 2600 do BCP, 1900 do BES/Novo Banco, quase 1400 do BPI, no Santander saíram 260 só desde a compra do Banif – e na Caixa saíram 1400, a que se somarão mais 2200 até 2020. Uma razia. Porque há prejuízos a compensar. E porque há informatização dos serviços. O encerramento de balcões é feito pelas mesmas razões, mas também por outras: ter uma loja aberta custa dinheiro e há lojas de bancos que não têm movimento (isto é, captação de depósitos e concessão de crédito) suficiente para justificá-lo. Resolve-se assim: faz-se uma tabela com 180 linhas e duas colunas, uma para o nome do balcão e a outra para o seu prejuízo.
Um governo que promete a descentralização política, que abre páginas de internet a falar de felicidade e que defende um banco do Estado não pode aceitar resignado uma lista de cento e oitenta encerramentos sem saber o onde e o quem, mesmo que saiba o porquê. Fechar um balcão bancário em Lisboa ou Porto é um incómodo para os clientes. Numa localidade do interior, é um desligamento. Das pessoas e da possibilidade de economia.
A história que se conta na Aldeia da Pena é a de um funeral que subia o caminho íngreme, fazendo o esquife com o morto resvalar para cima do vivo que o carregava, esmagando-o fatalmente. É uma história que serve de triste parábola. Nas terras onde não há nada já não há ninguém para se queixar de não haver nada. Nelas, o silêncio parece sossego.