Quem vai escrever o guião à esquerda?
Acabei o texto da edição semanal do Expresso, que dediquei às declarações de Augusto Santos Silva sobre uma possível reedição da geringonça, dizendo que não tinha razões para pensar que elas resultavam apenas de uma vontade de um ministro que nunca mostrou qualquer entusiasmo com os entendimentos à esquerda. Santos Silva não é apenas o número dois do Governo, é do núcleo duro de António Costa. E é evidente que as posições do primeiro-ministro se têm aproximado cada vez mais das suas e das de Mário Centeno. Usando os termos românticos do debate sobre o estado da Nação, quanto mais nos aproximamos das eleições menos o primeiro-ministro tem a geringonça no seu coração e na sua cabeça.
A minha tese é a de que estamos perante a velha rábula do polícia mau e do polícia bom. António Costa não veio desmentir Santos Silva, veio cumprir o seu papel. Esta minha convicção foi, aliás, confirmada pelo texto publicado aqui no Expresso, por Ângela Silva. Costa estará concentrado na aprovação do Orçamento do Estado de 2019, arrefecendo a conflitualidade na geringonça. Santos Silva, que o “Sol” dá como provável cabeça de lista às europeias (estranharia se se confirmasse), está a preparar o terreno para a estratégia eleitoral do PS pós-Orçamento: dramatização, para que se crie um ambiente em que a reedição das alianças à esquerda pareça cada vez mais improvável aos eleitores, tentando assim fazer renascer o voto útil para uma maioria absoluta.
Como escrevi no texto de sábado, não há nenhuma hipótese de PS chegar a acordo em matéria europeia com PCP e BE. E ainda bem. Se Bloco e PCP se rendessem ao euroconformismo do PS isso abriria espaço para o crescimento de forças eurocéticas à direita. Em vez da critica democrática à agenda antissocial e neoliberal que domina Bruxelas passaríamos a ter espaço para a crítica nacionalista de direita. O justificadíssimo euroceticismo da esquerda é o melhor antídoto contra o crescimento de movimentos antieuropeístas de contornos xenófobos.
Estamos perante a velha rábula do polícia mau e do polícia bom. Costa está concentrado na aprovação do Orçamento do Estado, Santos Silva está a preparar o terreno eleitoral: dramatização, para que se crie um ambiente em que a reedição das alianças à esquerda pareça cada vez mais improvável aos eleitores, tentando fazer renascer o voto útil para uma maioria absoluta
Sendo bastante relevantes para decisões estratégicas – o PS está totalmente limitado na sua agenda social-democrata pela ortodoxia monetarista da Comissão Europeia e do BCE – não me parece que tenham sido as divergências em matérias europeias a estar no centro das recentes crises políticas à esquerda. Os quatro grandes temas de confronto foram a violação pelo Governo dos acordos com Bloco sobre precariedade (o que levou a ser o PSD a viabilizar as leis de trabalho), o fim do adicional ao imposto sobre combustíveis, o descongelamento da carreira dos professores e a entrega da Lei de Bases da Saúde a Maria de Belém Roseira, que propõe uma maior privatização do sistema. Se no primeiro caso a pressão europeia poderia ter alguma relevância, em todos os restantes não há qualquer relação com ela. Não é por causa das profundas divergências quer têm sobre a Europa que PS, BE e PCP se têm desentendido. Santos Silva não foi, por isso, empurrado pelas circunstâncias para fazer esta declaração. Elas tinham o objetivo de sublinhar a impossibilidade de repetir esta experiência.
O sucesso desta perigosa estratégia depende, acima de tudo, dos partidos mais à esquerda. Se seguirem esta coreografia do desentendimento crescente (como parece ser o caso do PCP), o PS poderá tentar capitalizar para reeditar o voto útil. Não será fácil, porque Rui Rio não é Passos Coelho, mas pode ter, em eleitorado que não quer ver o PS dependente do PSD, algum resultado. Se responder o que respondeu o Bloco, deixando sempre claro que a não reedição da geringonça terá de ser uma escolha expressa do PS, apenas dará razões aos eleitores que gostaram desta solução para garantirem que o PS não tem maioria absoluta e é de novo obrigado a conversar com os partidos mais à esquerda.
Antes das legislativas vêm as europeias e é de prever que o PS aproveite esse momento para explorar as diferenças quando elas serão mais evidentes. BE e PCP podem usá-las para refrear o excesso de autoconfiança dos socialistas. Tudo depende de quem conseguir escrever o guião.