AMÉRICA

Agora é mesmo guerra

ATAQUE Este homem, Gavin Eugene Long, matou três polícias no fim de semana. Esta imagem, filmada por uma câmara de segurança, foi divulgada pela polícia FOTO POLÍCIA DO LUISIANA / EPA

ATAQUE Este homem, Gavin Eugene Long, matou três polícias no fim de semana. Esta imagem, filmada por uma câmara de segurança, foi divulgada pela polícia FOTO POLÍCIA DO LUISIANA / EPA

Matar polícias por haver polícias que matam negros é uma lógica de guerra. E há cada vez mais gente a acreditar nela. Como, aliás, na lógica inversa

TEXTO LUÍS M. FARIA

Agora é mesmo guerra. Pelo menos para algumas pessoas. Gente como Gavin Eugene Long, o antigo marine que atingiu seis polícias no fim de semana em Baton Rouge, Luisiana, matando três. Long estava furioso com a morte de Alton Sterling, um residente dessa cidade abordado pela polícia à porta da loja onde vendia CD no passado dia 5. Os dois agentes tinham recebido informação de que alguém estava a causar problemas naquele local. O dono da loja deixaria depois bem claro que Sterling não fora de modo nenhum o problema. Apesar disso, os agentes resolveram administrar-lhe uma descarga de Taser, atirando-o a seguir contra um carro e depois para o chão. Na confusão que se seguiu, com ele aflito e os guardas a tentar segurar-lhe os braços, começaram a gritar que ele tinha uma arma. Um dos guardas disparou-lhe vários tiros à queima-roupa. Só então a sua arma lhe tombou do bolso. Ele jamais chegara a pegar nela, ou sequer a tentar pegar-lhe, segundo o dono da loja.

Sterling tinha 37 anos e uma história de vida difícil. Estava há meses a viver num abrigo e a venda de CD permitira-lhe finalmente ter um rendimento regular. Andava com uma arma porque diversos vendedores tinham sido assaltados recentemente naquela zona. Se tinha cadastro, os dois polícias também já tinham sido investigados por brutalidade – embora, no caso deles, sem condenação. Em lugares como aquele, sabe-se bem, o normal é os polícias raramente serem condenados e os negros serem-no quase sempre. Logo nessa noite houve manifestações na cidade. No dia seguinte, o grupo Black Lives Matter (as vidas negras são importantes) organizou uma vigília noturna. O presidente Obama deplorou a tragédia e o FBI fez um aviso sobre “ameaças a forças da ordem e ameaças potenciais à segurança do público em geral”. Quatro homens foram presos por alegado envolvimento num plano para assassinar polícias.

Uma semana depois, Long tomou a iniciativa. Agindo aparentemente sozinho, cometeu o tipo de ato que há algum tempo defendia nos social media como sendo a única forma de os negros se defenderem. Às vezes, a violência é necessária para efetuar a mudança, dizia, e o autossacrifício também. O tiroteio do fim de semana terminou como é habitual nesses casos: com a morte do assassino. O mesmo fim que teve outro veterano do exército, Micah Xavier Johnson, que a 7 de julho já tinha abatido cinco polícias em Dallas. Além de Sterling, Johnson estava indignado com a morte de Philando Castile, um condutor a quem a polícia do Minnesota tinha pedido os documentos e que foi baleado no momento em que os ia retirar do bolso. Castile avisara os agentes que era portador de uma arma, legalmente sua, mas dispararam sobre ele na mesma.

O vídeo dos momentos seguintes, com a sua namorada a explicar à polícia que não havia motivo para o abater, foi logo descarregado na net. Seria visto por mais de um milhão de pessoas. Deve ter contribuído para motivar Johnson, que ironicamente escolheu cometer o seu crime aproveitando uma marcha de protesto pacífica, no dia seguinte. Encurralado numa escola, Johnson foi morto através de uma bomba instalada num robot – um método novo na polícia americana, que por certo se tornará a ver em situações futuras.

#BLACKLIVESMATTER Uma imagem que se tornou símbolo da luta contra a discriminação racial nos EUA: uma mulher detida pela polícia quando se manifestava pacificamente em Baton Rouge, no Luisiana FOTO REUTERS

#BLACKLIVESMATTER Uma imagem que se tornou símbolo da luta contra a discriminação racial nos EUA: uma mulher detida pela polícia quando se manifestava pacificamente em Baton Rouge, no Luisiana FOTO REUTERS

“Não consigo respirar”

Todas as vítimas da polícia nos casos acima referidas, bem como os dois homens que mataram agentes, eram negros. Nos Estados Unidos, há muito que a polícia, e o sistema criminal em geral, são acusados de racismo. Brutalidade, utilização de ‘racial profiling’ (atribuir automaticamente perigosidade a pessoas de certas raças, nomeadamente a negra) e aplicação seletiva da lei são manifestações do fenómeno, comprovadas pela estatística. Em 2013, a tensão recrudesceu após um vigilante chamado George Zimmerman ser absolvido da morte de um adolescente, Trayvor Martin. Martin vinha de casa de um amigo quando Zimmerman o abordou na rua. Na confrontação subsequente, que mais ninguém viu, Zimmerman abateu a tiro o jovem. Alegou autodefesa e a polícia não o prendeu. Só foi julgado depois de grandes protestos públicos, mas mesmo assim o tribunal deu-lhe razão, baseando-se numa lei da Florida que dá latitude quase total para reagir contra supostas ameaças, mesmo quando não o fazer possa evitar a violência.

Obama procura atender aos vários lados da questão, mas isso não lhe vale de muito. Nem à direita, nem sequer à esquerda

A absolvição de Zimmerman – e, já antes, a indiferença das autoridades em relação ao caso – foi o catalisador imediato para o aparecimento do Black Lives Matter, um movimento de protesto descentralizado que adapta as tradições da luta pelos direitos civis à era dos social media. Em 2014, houve outro caso de brutalidade bastante público que lhe deu um impulso decisivo. Em Staten Island, na cidade de Nova Iorque, um outro vendedor de rua negro foi abordado pela polícia com resultados fatais. Eric Garner, que não agredira ninguém, foi imobilizado por um agente policial através de uma gravata – um movimento expressamente proibido pelas regras da polícia nova-iorquina. Já no chão, disse onze vezes que não conseguia respirar. O agente não ligou. Ao fim de quase vinte segundos, perdeu a consciência. A polícia nada fez para lhe prestar socorro durante os longos minutos que a ambulância demorou. Uma hora depois, morreu no hospital.

Nas manifestações que se seguiram pelo país fora, membros do Black Lives Matter deitaram-se na rua em ‘die-ins’, (um trocadilho com os ‘sit-ins’ dos anos 70, com a ideia de morte acrescentada) e “não consigo respirar” tornou-se palavra de ordem. Os sindicatos da polícia fizeram as suas próprias manifestações com t-shirts em que diziam ‘eu consigo respirar, graças à polícia’. Pela sua parte, os políticos disseram o que se esperava deles. O ‘mayor’ de Nova Iorque, que tem um filho negro, mostrou simpatia pelo Black Lives Matter, recebendo críticas por isso. O assassinato retaliatório de dois agentes nova-iorquinos, logo em 2014, deixou-o numa situação delicada. Um dos seus antecessores, Rudy Giuliani, pôs-se incondicionalmente do lado da polícia. Obama procura atender aos vários lados da questão, mas isso não lhe vale de muito. Nem à direita, nem sequer à esquerda. Cornel West, um professor negro a quem o presidente em tempos defendeu quando ele teve uma altercação com a polícia, acusa-o de “relutância” na matéria. “Não é uma questão de interesse de grupo”, escreve West.

FOTO REUTERS

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“Infelizmente, durante boa parte da presidência Obama, tem sido uma questão de ‘Não sou o presidente dos negros, sou o presidente de todos’. Mas isto é uma questão de justiça”, continua West. “Obama não foi a Baton Rouge. Não foi a Minneapolis. Passou por cima e foi a Dallas. Não se pode fazer isso. A sua preocupação principal foi falar à polícia. Mas as pessoas que estão a lutar têm uma perspetiva diferente.” Quando uma outra morte aparentemente injustificada de um negro às mãos de um agente aconteceu em Ferguson, no Missouri, o Departamento de Justiça ordenou uma investigação à polícia. Concluiu-se que, nessa cidade onde os brancos são um terço da população mas constituem o grosso do corpo policial, 85 das paragens na estrada, 90% das multas e 93% das detenções eram aplicadas a negros.

Tratando-se de multas por atravessar a estrada fora da passadeira, a percentagem de negros atingia os 95%. Os funcionários locais partilhavam abertamente piadas racistas no email. Um dizia que uma forma de reduzir o crime seria as negras fazerem abortos. Outro garantia que Obama jamais conseguiria ser reeleito, pois nenhum negro conservava o mesmo emprego por mais de quatro anos. E a essas pessoas competia, compete, serem os guardiões da paz social naquela terra.