Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteiro
Centeno e a lei da desigualdade
Todos os dias, ou quase, ouvimos muita gente protestar contra a desigualdade existente em Portugal. Nomeadamente a desigualdade salarial. É óbvio que em 80% dos casos têm razão. Há uma desigualdade brutal. Mas também em 80% dos casos não têm razão: essa desigualdade não é sobretudo entre homens e mulheres, que também existe, nem entre licenciados e não licenciados (que alguma teria de existir). É, sobretudo, entre jovens e instalados.
Mas há uma outra desigualdade que o ministro das Finanças veio dizer este fim de semana que não iria agravar-se: entre os impostos pagos pelos trabalhadores por conta de outrem que auferem um salário decente e os restantes. Contas recentes indicavam que 70% do IRS é pago por 11% das famílias – eis uma desigualdade, uma vez que estas famílias ganham 2300 euros e mais (ilíquidos). Aliás, estou convicto que, se as contas fossem feitas pelos rendimentos líquidos, o degrau da desigualdade baixaria consideravelmente.
Vejamos. Uma pessoa que aufira 10 mil euros ilíquidos mensais ganha quase 20 vezes mais do que uma que aufira o salário mínimo (no ilíquido). Mas cerca de 10 vezes mais (no líquido). A relação de 1/10 pode ser considerada boa ou má. Mas é diferente da relação 1/20. E estamos sempre a falar de quem trabalha por conta de outrem, sem a demagogia habitual de que são pessoas ricas, herdeiras ou que nunca fizeram nada.
Começamos por ter uma desigualdade gritante entre os que pagam IRS (52% das famílias) e as que não pagam (48%). Este número significa que há demasiada gente com salários baixos e não muita com salários altos. Por mim, já o defendi, todos deviam pagar, nem que fosse simbolicamente. Para perceber de onde vem o dinheiro do Estado – dos seus bolsos. Entre os que pagam, 2,3 milhões de famílias são responsáveis por 2,6% das receitas (ganham até 10 mil euros por ano, o que são salários muito baixos). Depois, 1,4 milhões de famílias que ganham mais de 10 mil e menos de 19 mil responsabilizam-se por 8,9% do IRS. 757 mil famílias que auferem entre os 19 e os 32,5 mil euros (sempre ilíquidos ou brutos) pagam 18,7% do imposto. Reparem que até aqui temos apenas 29,2% do imposto pago. É daqui para cima, dos 32,5 mil euros ilíquidos anuais ou dos 2300 euros mensais (14 meses) brutos que tudo o resto é pago – 7 mil milhões de euros pagos por 562 mil famílias. Ricas? Não – remediadas.
Estes números, que foram coligidos para o Expresso pela jornalista Joana Nunes Mateus, mostram bem como a responsabilidade social funciona em Portugal. Estamos a falar de rendimentos – não de fortuna. No limite, entre os que não liquidam IRS pode haver titulares de fortunas e património consideráveis pelos quais pagarão imenso IMI e taxas liberatórias significativas. Mas nunca ao nível do IRS, que logo a seguir ao IVA e não muito longe desta, é a segunda maior receita do Estado. A que serve para Saúde, Educação, Justiça, obras e o que mais for. Acima de 80 mil euros brutos (5700 euros/mês) a taxa é de 48%, o que dá um rendimento líquido de um pouco mais de 2700 euros por mês. São estes que ganham muito? Não! Este é um salário banal em qualquer país desenvolvido. Mas em Portugal, se ganharem mais ainda (e com a sobretaxa que parece que vai, finalmente, desaparecer), pode chegar a 56,5% de desconto. Naturalmente, a tudo isto, dos que ganham quase nada a estes, há que acrescentar (ou diminuir) 11% de Segurança Social pago pelo trabalhador e 23,75% pago pelo patrão. Voltando ao número redondo de 10.000 euros/mês, em que o patrão paga no total 12.375 euros (10.000 diretamente ao trabalhador e 2.375 que paga por ele à Segurança Social), o assalariado - bem pago, não discuto - leva para casa cerca de um terço, ou pouco mais, do que despendem com ele.
Talvez por isso, os salários dos quadros mais jovens (licenciados, doutorados, etc.) tenha descido abruptamente. Cria-se mais emprego, mas maus empregos, mal pagos. Talvez por isso, alguns dos nossos melhores crânios continuam a ir-se embora.
É por isso que a declaração de Centeno é importante – não vai aumentar ainda mais os escalões mais altos. Mas é, também, por isso que, quando falamos de desigualdade, há que ter em conta o esforço que os que ganham razoavelmente fazem (ou são obrigados a fazer) para a minorar. Comparar o incomparável (salários brutos) corresponde apenas a uma mentira.