MARGARIDA DE SOUSA UVA 1955-2016

Um beijo, Guida

FOTO RUI OCHÔA

FOTO RUI OCHÔA

Margarida de Sousa Uva morreu esta quinta-feira, vítima de cancro. Luísa Meireles, redatora principal do Expresso, escreve-lhe uma carta de despedida - foram colegas de escola

TEXTO LUÍSA MEIRELES

Vou lembrar-me sempre do rabo-de-cavalo da Guida. Invejava-o. O cabelo era de um castanho avermelhado, macio, pesado. Ela usava-o muitas vezes preso e ele balouçava de um lado para o outro, tudo aquilo que o meu não fazia, grosso e encaracolado. Acho que era a sua marca no liceu. Tínhamos 15-16-17 anos e andávamos ambas no Rainha D. Amélia, ela em Germânicas, eu em Direito.

O liceu era pequeno, no Palácio que já então tinha grande parte das instalações fechadas ao nosso uso, a cair. Nos últimos anos, então 6º e 7º, a direção da escola reunia todas as alíneas de Letras numa só turma, porque a maior parte das disciplinas era comum. Éramos mais de 40. Foi assim que conheci a Guida Uva. Muito poucas de nós acabariam afinal por seguir para a faculdade, mas eu e a Guida fizemo-lo. Ambas na Cidade Universitária, ela de um lado, eu do outro. Entrámos no mesmo ano, em 1973.

Lembro-me bem desses tempos. Os pais moravam na mesma rua do liceu, num pequeno palacete na Junqueira – ainda lá está e nem sei se continua na família - , e às vezes apanhávamos o autocarro de sempre, o 32. Fizemos as nossas pequenas transgressões, fomos a Londres na viagem de finalistas, andávamos na carrinha da Juja, a única de nós que sabia guiar e pedia de vez em quando emprestado “o pão de forma” da irmã.

A faculdade separou-nos. Eu era colega de turma do Durão Barroso, que só conheci depois do 25 de Abril, em virtude da sua militância política, um furioso MRPP. De chacota, quem não seguia o mesmo partido, maioritário em Direito, dizia que ele tinha “um olho na China e outro nos Estados Unidos”, aludindo ao seu pronunciado estrabismo, que haveria de corrigir mais tarde. Mas ele foi-se pouco a pouco afastando da “linha vermelha”, a justa, e passou-se para a “linha negra”. Foi afastado do partido e já namorava com a Guida.

FOTO RUI DUARTE SILVA

FOTO RUI DUARTE SILVA

Estive anos e anos sem a ver. Reencontrei-a uma vez na sala VIP do aeroporto, ela esperava o marido e eu, já jornalista, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, para o entrevistar. Eram os tempos dos acordos de Bicesse, sobre a paz em Angola. Estivemos um bom pedaço à conversa, lembrando os velhos tempos, que é feito desta e daquela, que fazes, soube que tens filhos, como é que foi que nunca nos vimos antes, combinámos encontrar-nos, o costume. Tinha na ideia escrever um artigo sobre a nossa geração, a que teve o 25 de Abril de presente no despertar da juventude, desafiei-a a ela e ao Zé Manel para isso, ambos acharam ótima ideia. Cada geração, apercebi-me mais tarde, acha sempre que a sua geração “é que é”, mas a verdade é que a ideia nunca passou ao papel, sempre ultrapassada por outras tarefas mais imediatas no jornal.

Fui acompanhando a sua vida pública e oficial, de “sra. de Durão Barroso” pelas fotos das revistas, os mexericos, o-diz-que-disse. Encontrei muito mais vezes o marido do que ela. Voltei a vê-la por acaso às compras numa loja, já o marido deixara de ser ministro e estavam de partida (ou de regresso, já não me recordo) para os Estados Unidos, onde o Zé Manel tinha sido convidado um ano a lecionar em Georgetown.

Não estava bem. Tinha uma doença grave e estava a tratar-se. Estava triste e deprimida e apercebi-me pela primeira vez que “ser mulher de” era muito mau. Aliás, a loja era para homens e ela estava ali a escolher roupa para o marido. A Guida, a promissora Guida, abdicara de si, anulara-se, para se tornar mãe e dona de casa.

FOTO RUI OCHÔA

FOTO RUI OCHÔA

Fazia-lhe falta um trabalho, disse-me. Conversámos muito tempo, a Guida parecia ansiosa por falar. Os três filhos já estavam crescidos. Tinha estado no “Semanário”, na Comissão dos Descobrimentos, depois dedicara-se às artes, ia a exposições, dava-lhe prazer. Aquela boa disposição desaparecera. Achei compreensivelmente que era da doença, mas era também algo mais.

Não tornei a vê-la, quer dizer, a estar com ela com tempo para conversarmos. Foi sempre de fugida. Perguntava por ela ao marido sempre que o via, ele falava-me dela, da fibromialgia que a punha muitas vezes de cama ao fim da tarde. Já ele estava em Bruxelas, presidente da Comissão Europeia, um cargo que ela não quis para ele, mas rendeu-se. Acho que lhe fez bem viver por lá.

Já não sei como soube do cancro, nem interessa. Deu-me um baque. Uma coisa são as pessoas distantes, outra aquelas que por uma razão ou outra acompanhámos. Hoje tive um sobressalto. E uma imensa tristeza. Era o que os seus olhos me diziam. Um beijo, Guida.