“Não morremos por uma questão de horas”
Durante três semanas de Outubro de 1975, ao serviço da RTP, Adelino Gomes testemunhou o início da invasão de Timor-Leste pela Indonésia, escapou ao ataque que matou duas equipas de jornalistas australianos, fugiu a pé pelas montanhas e conheceu de perto os jovens guerrilheiros da Fretilin. Foi o último repórter a visitar o território antes da proclamação unilateral da independência. Depoimento recolhido por Raquel Moleiro
ADELINO GOMES
Fui o último jornalista português que esteve em Timor antes da proclamação unilateral da independência, pela Fretilin, a 28 de novembro, e da invasão indonésia, a 7 de dezembro. A guerra civil tinha começado em agosto e em finais de setembro a RTP mandou uma equipa. Afinal Portugal era a potência colonial. Ninguém sabia o que se estava lá a passar. Chegavam notícias internacionais a dizer que já tinham morrido três mil pessoas. Primeiro fomos para Darwin e ficámos lá à espera de uma boleia para a ilha de Ataúro, onde estava a tropa portuguesa, porque não havia ligações para Timor. Só entrámos no final da primeira semana de outubro, e ficámos lá até à terceira.
Conseguimos ir para Timor Leste alugando um pequeno avião a um comerciante australiano. Primeiro ele foi a Timor e levou uma carta minha, em nome da equipa da RTP, para o comité central da Fretilin, dirigida ao vice-presidente Nicolau Lobato. Dois dias depois regressou com uma carta − que eu agora ofereci ao Museu da Resistência Timorense −, em que se lê que a Fretilin tem muito prazer em receber a RTP e que poderíamos circular livremente por todo o território.
A nossa estadia acabou por ser dramaticamente importante, porque coincidiu com uma invasão terrestre de forças do MAC, o Movimento Anti-Comunista, que era constituído pelos partidos anti-Fretilin. Eles entraram enquadrados por forças do exército indonésio, pela fronteira junto de Balibó. Nessa altura mataram os jornalistas que lá encontraram de duas equipas da televisão australiana. Nós, da RTP, tínhamos estado com eles poucas horas antes. Mas tínhamos fome, estávamos fartos de comer conservas, queríamos tomar banho e retirámo-nos para Maliana, que fica a uns dez quilómetros de distância. Não morremos por uma questão de horas.
Estávamos numa colina, no Colégio Infante de Sagres, de um padre português. Ao vermos aterrar um C130 numa pista de terra batida percebemos que aquilo já não era só um problema timorense, que havia tropas indonésias envolvidas − os timorenses não tinham aviões. O padre disse-nos que era melhor irmos embora, fugirmos pela montanha, porque não podia garantir a nossa segurança. Eu defendo que a invasão de Timor começou nessa madrugada do dia 16 de outubro de 1975, quando forças terrestres ocuparam Balibó, Maliana e depois foram conquistando tudo aquilo até junto do mar, e nunca mais saíram dali. É uma ficção fixar a invasão apenas dois meses depois, quando a aviação indonésia largou sobre Díli centenas de paraquedistas e a cidade foi bombardeada pela marinha.
Quando chegámos a Timor já não vimos guerra civil porque a Fretilin tinha vencido a guerra e ocupava todo o território, com exceção de uma terrinha chamada Batugadé. Mas assistimos a essa espécie de pré-invasão indonésia: vimos helicópteros, filmámos navios mesmo junto da fronteira marítima. E depois a entrada em Balibó, esse início trágico e dramático que me marcou o olhar jornalístico nos 24 anos que se seguiram, que me permitiu ver, por um lado, a força da mentira da diplomacia indonésia e, por outro, a benevolência da Austrália, que nunca protestou suficientemente nem quis investigar. Os indonésios disseram que não tinham reconhecido os jornalistas porque estavam fardados como a guerrilha, o que é mentira. Nós fomos os últimos a filmá-los e estão vestidos à civil, alguns em tronco nu. Eles mataram-nos porque eram a prova viva da invasão.
Conseguimos sair de Timor para a ilha de Ataúro alugando novamente o avião do comerciante australiano. Mas antes disso fugimos, a pé, durante três dias pelas montanhas. O padre disse para irmos andando e pedindo auxílio. Éramos quatro: eu, o Herlander Mendes, que era o operador de imagem, o Jorge Teófilo, que era o operador de som, e o Manuel Patrício, que era o assistente de imagem. Lá conseguimos uns guias para irem ver se havia algum caminho. Nós já não aguentávamos mais.
Em Díli já se sabia que os indonésios e o MAC tinham entrado e que os jornalistas tinham sido mortos. Em Portugal o jornal “República” chegou a pôr na primeira página que estávamos desaparecidos. Convenceram-se que nós também tínhamos morrido. Quando chegámos a Díli, depois de três dias a pé, parecíamos fantasmas, o fantasma de nós mesmos, almas penadas. Uma das primeiras coisas que fiz foi ir à Marconi telefonar para a RTP, para que avisassem a minha mulher. Foi a Maria Elisa que lhe ligou a dizer que eu estava vivo. E até dizem, mas eu não me lembro, que quem me atendeu lá foi um tal funcionário da Marconi chamado Xanana Gusmão.
Achávamos que tínhamos connosco as imagens que provavam a presença do exército indonésio em Timor. Só quando chegámos a Portugal, uns oito dias depois, e pusemos o filme a revelar, é que vimos que as imagens não provavam nada. O C130 a aterrar que nós víamos perfeitamente a olho nu, a 500 metros em Maliana, parece apenas uma mosca. Ouviam-se tiros, rajadas, mas não se vê o exército, nada. Quem não quisesse acreditar em nós podia continuar a não acreditar. Foi uma desilusão profissional.
Quando a Fretilin declarou a independência unilateralmente, a 28 de novembro, eu já estava em Lisboa há um mês. Eles propuseram negociações, mas Portugal atrasava sempre tudo, estava mais preocupado com Angola, que ia ser independente a 11 de Novembro. Portugal tinha um olhar desinformado sobre Timor, porque aquele grupo da Fretilin incomodava, tinha-se radicalizado muito, havia lá muita gente até da extrema-esquerda e alimentava-se a ideia de uma influência soviética. Portugal não percebeu que, na verdade, aqueles jovens estavam muito identificados com um sentido profundo do povo.
Perante a indiferença de Portugal e a pressão indonésia, que já estava a ocupar o território, a solução foi a declaração unilateral, uma espécie de fuga para a frente, um ato de desespero, mas de um desespero inteligente, que cria um ato politicamente muito importante, um facto consumado, proclamado. Porque apesar de tudo essa declaração de independência foi reconhecida pelas ex-colónias portuguesas, o que deu alguma consistência a que se dissesse depois que era um país. Aliás, eles não chamam ao 20 de maio de 2002 o dia da proclamação da independência, mas o dia da restauração da independência.
Nas próximas edições, o Expresso Diário conta os dias da independência das ex-colónias portuguesas pela voz dos jornalistas que os presenciaram.
Amanhã
ESPETÁCULO
NOITES DO PALÁCIO ENCANTADO
Esta sexta-feira, e também no sábado e no domingo, entre as 22h e a 1h, os jardins e o palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras, são palco do espetáculo Noites do Palácio Encantado, com projeções multimedia, video mapping interativo e outras iniciativas que contam a história do marquês, do palácio e dos seus lugares e objetos. Entrada gratuita nos três dias e visita ao palácio gratuita a partir de segunda-feira, durante um mês.
FESTIVAL
PRÓXIMO FUTURO
Música, cinema, teatro, instalações, debates e seminários fazem parte, a partir desta sexta-feira, de mais uma edição, a 7ª, do festival Próximo Futuro, que de 19 a 25 de junho (e depois de 4 a 15 de setembro) leva diariamente aos jardins da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, artistas, performers e escritores e pensadores das regiões do Mediterrâneo e da América Central. Entrada gratuita.
TELEVISÃO
LUTAS DA MAFIA NA RTP2
Estreia esta sexta-feira, na RTP2, às 22h, a série “Gomorra”, baseada no livro homónimo de Robert Saviano sobre a mafia napolitana. A série é composta por 12 episódios, que serão transmitidos de segunda a sexta-feira, no mesmo horário.
TEATRO
HÁ RAPOSAS NO TEATRO ABERTO
A luta pelo poder dentro de uma família e os valores pelos quais se rege o ser humano são os condimentos da peça “As Raposas”, da norte-americana Lilian Hellman, que está a partir desta sexta-feira (21h30) no palco do Teatro Aberto, em Lisboa. Bilhetes entre €7,5 e €15.