DENÚNCIAS DE DETENÇÃO, TORTURA E ASSASSÍNIO DE GAYS
Na Chechénia os homens temem ligar aos amigos para saber onde é que eles estão
Foto Getty
Duas semanas depois de ter sido denunciada a existência de um centro extrajudicial para deter, torturar e matar homossexuais na república da federação russa, o “Novaya Gazeta” teme pela vida dos jornalistas que expuseram o caso e o governo de Vladimir Putin continua alinhado com o do seu fiel seguidor checheno, Ramzan Kadyrov
Texto Joana Azevedo Viana
Vamos seguir o exemplo de um site australiano e inaugurar este artigo com um aviso prévio: seguem-se descrições gráficas violentas sobre o que está a passar-se num canto remoto da Rússia chamado Chechénia, onde a homossexualidade não é proibida por lei mas onde as autoridades responsáveis por aplicar a lei são acusadas de estarem a torturar e a assassinar homens gay com total impunidade.
A notícia surgiu há duas semanas pela mão do “Novaya Gazeta”. Na própria manchete, o jornal russo dedicado a investigar violações de direitos humanos na federação e nos seus territórios também já lançava uma espécie de aviso aos leitores, com um ‘+18’ entre parêntesis por causa do que era descrito. E o que é descrito é a existência de uma espécie de campo de concentração perto de Argun, a 20 quilómetros da cidade de Grozny, a capital, para onde as autoridades da Chechénia já terão levado pelo menos 100 homens a fim de os extorquirem, torturarem e até matarem pelo simples facto de gostarem de outros homens.
O Presidente Ramzan Kadyrov Foto Getty
O que começou como uma detenção isolada escalou para o que a diretora da Rede LGBT Russa descreve como “uma campanha organizada para deter homens gay” na região de maioria muçulmana que está sob as lides de Ramzan Kadyrov, ex-rebelde separatista hoje extremamente fiel a Vladimir Putin, que é líder de uma milícia privada e presidente da Chechénia desde 2007.
“Não é possível deter e reprimir pessoas que simplesmente não existem na república”, foi como o seu porta-voz, Alvi Karimov, respondeu na semana passada às denúncias, garantindo que os direitos humanos têm gozado de “grandiosas” melhorias na Chechénia. Anteontem, o próprio Kadyrov veio acusar o jornal da oposição russa de executar um “ataque massivo” de contra-informação em que “a realidade é distorcida”, no que classifica como “tentativas de denegrir a nossa sociedade, estilo de vida, tradições e costumes”. O Kremlin também se juntou ao desmentido, com o porta-voz do governo russo a dizer há alguns dias que “não há informações fidedignas” que corroborem as alegações.
O escritor Alvi Karimov Foto Reuters
Para o “Novaya Gazeta” há e, depois de ter visto seis jornalistas serem assassinados desde 2001 por causa de investigações incómodas para o governo de Putin e seus aliados, o jornal diz temer agora pela segurança dos que noticiaram a existência deste campo de detenção e tortura, repórteres que estão escondidos desde o dia da publicação. “A repressão em massa na Chechénia tornou-se uma má tradição”, apontava o jornal no artigo de 4 de abril. “A cada momento, esta repressão torna-se mais catastrófica em escala e cada vez mais absurda no seu raciocínio.”
Apesar de não ser proibida por lei na república da federação russa, a homossexualidade nunca foi bem aceite na Chechénia, onde há anos se acumulam denúncias dos chamados “crimes de honra”, em que são as próprias famílias de pessoas gay a matá-los. Agora, e segundo a investigação, a prática entrou no campo oficial, depois de em fevereiro a polícia chechena ter detido um homem suspeito de estar sob a influência de drogas e ter descoberto no seu telemóvel fotografias e vídeos sexuais explícitos e “dezenas de contactos de homossexuais da localidade”, uma “base de dados” que, segundo o “Novaya Gazeta”, gerou “a primeira vaga de detenções e execuções”.
Desde então, as autoridades têm estado a fazer buscas a casas privadas e locais de trabalho de homens suspeitos de gostarem de outros homens, de homens cujos contactos constavam da lista telefónica do primeiro detido e dos que se lhe seguiram e até daqueles que, sendo amigos dos desaparecidos, tentam contactá-los para saberem o que se passa. O jornal e a Rede LGBT Russa aponta que, no local para onde os levam, são vítimas de extorsão e tortura, eletrocutados, obrigados a enfiar garrafas de vidro nos ânus e, em última instância, mortos — até agora há registos de pelos menos três execuções.
“Confirmamos o que o ‘Novaya Gazeta’ noticiou”, disse à BBC Natalia Poplevskaya, diretora da ONG com sede em São Petersburgo, que continua sem obter reações da procuradoria-geral russa, da Comissão Federal de Investigação e da comissária para os Direitos Humanos. “Não obtivemos respostas, apesar de todas as tentativas. A única coisa que a relatora russa disse que foi que iam iniciar uma investigação. Isto só depois de a Amnistia Internacional apresentar a sua própria queixa. O gabinete do comandante militar é agora o centro de detenção oficioso para as torturas, perto de Argun, todas as vítimas confirmaram isso.” Nas declarações ao canal britânico, Poplevskaya rejeitou a expressão “campo de concentração” que os media têm usado para descrever o centro de detenção extrajudicial.
“Parece abandonado, mas não está”, relata uma das testemunhas entrevistadas pelo “Novaya Gazeta”. “É mais como uma prisão fechada, cuja existência não é oficialmente reconhecida. Muitas vezes por dia éramos levados para sermos espancados. A principal tarefa [dos carrascos] é descobrir a nossa rede de contactos. Eles acham que, se fomos detidos, então é porque todo o nosso círculo de contactos é composto por gays. É por isso que os nossos telefones não estão desligados. Eles estão à espera que alguém mande uma mensagem ou telefone. Qualquer homem que ligue ou envie mensagens recebe uma chamada de volta e é convidado para um encontro sob qualquer pretexto.”
Nos últimos dias têm-se multiplicado os protestos frente às embaixadas russas em várias capitais, com a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos e a União Europeia, a par de organizações como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional a exigirem a Moscovo que investigue as alegações. Para já, o Kremlin continua a distanciar-se da situação e, na Chechénia, o líder espiritual dos muçulmanos, o mufti Salah-hajji Mezhiev, já declarou que “Alá vai castigar os que estão a denegrir toda a nação chechena”. Confrontado com a aparente ameaça, o conselho editorial do “Novaya Gazeta” prometeu continuar a denunciar as violações e deixou uma indireta à federação de Putin. “O silêncio e a inação por parte daqueles que têm capacidade para fazer alguma coisa marca-os como cúmplices.”