DIÁSPORA
O tratamento incorreto daqueles que sofrem pelas atrocidades atuais não se coaduna com os meus valores judaicos
Outrora consensual, o Estado de Israel deixou de ser tema aglutinador para os judeus norte-americanos. Subiram de tom as vozes que ousam apontar o dedo a Benjamin Netanyahu, sobretudo entre a geração mais nova, defensora dos valores liberais que entendem estarem ameaçados. A memória coletiva do Holocausto começa também a esboroar-se e, com isso, dilui-se o “sentimento de pertença”
Texto Mafalda Ganhão Ilustração Ana Simões
A atriz Natalie Portman, nascida em Jerusalém, revelou surpreendentemente há três semanas que não viajaria como previsto à sua terra natal e declinou receber o Prémio Genesis - galardão concedido a membros da comunidade judaica como reconhecimento pela sua trajetória profissional e pelo seu compromisso com os valores do judaísmo. “Os recentes acontecimentos em Israel foram extremadamente angustiantes para ela e não se sente confortável a participar em qualquer evento público no país”, disse então um porta-voz de Portman, o que mais do que esclarecer veio aumentar o burburinho em torno da decisão e dos motivos concretos por que esta foi tomada.
Longe de poder ser tomado como um ‘fait divers’ ou como um apontamento para as revistas cor-de-rosa que acompanham os espirros das celebridades, uma tomada de posição desta natureza - vinda de uma atriz fluente em hebraico, que já defendeu publicamente Israel no passado – é relevante. Houve mesmo quem nela visse uma defesa do movimento global BDS (iniciais de Boicote, Desinvestimento, Sanções), que promove uma campanha de boicote económico, cultural ou científico a Israel, com o objetivo de acabar com a ocupação e colonização de territórios palestinianos.
Natalie Portman desmentiu. E usou a sua conta no Instagram para se explicar, por palavras próprias. “Como muitos israelitas e judeus em todo o mundo, eu posso criticar a liderança de Israel sem desejar boicotar toda a nação”, escreveu. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu discursaria no evento e “eu não queria que parecesse que o apoio”, pode ler-se também. É uma afirmação de princípios: “Israel foi criado há exatamente 70 anos, como refúgio para os refugiados por causa do Holocausto, mas o tratamento incorreto daqueles que sofrem pelas atrocidades atuais não se coaduna com os meus valores judaicos. Porque me importo com Israel, tenho de estar contra a violência, a corrupção, as desigualdades e o abuso de poder”.
Eis como um ‘post’ numa rede social tem o dom de resumir, pelo menos em parte, o que retrata o novo perfil de alguns judeus americanos. Como judia, 36 anos, mas já criada nos Estados Unidos e seu produto social, Natalie Portman pode ter uma causa mas tem também um sentido crítico em relação a ela.
Não está sozinha, dizem os analistas políticos e sociais. Há na América atual um coro crescente de judeus que contestam tanto a forma como Israel ocupa o território palestiniano e responde aos protestos pacíficos usando a força, como o facto de ser um estado judaico que só reconhece como legítimo o judaísmo ortodoxo e a ala mais conservadora, por assim ser necessário para que o primeiro-ministro se mantenha no poder.
Mais. Perante uma comunidade judaica como a americana, que tradicionalmente fez sempre o louvor de Israel, inclusive apoiando este Estado com chorudas doações financeiras, há uma nova geração que dela descende mas que acusa a sua própria classe dirigente de trair ideais como os da liberdade de expressão, direitos humanos e o da procura pela paz.
Disse-o, já em 2015, o jornalista norte-americano judeu Peter Beinart. Num artigo publicado no “The New York Times Review of Books”, alertava para o risco de a atitude desta classe dirigente ao defender Israel “a todo o custo, faça o seu Governo o que fizer”, poder levar os judeus mais novos a deixarem de apoiar a causa judaica. O recado era um tiro disparado na direção dos influentes lóbis judeus a operar nos EUA, sobretudo visando o poderoso AIPAC (Comité de Assuntos Públicos Americano-Israelitas), com o jornalista a sublinhar que não se podem sacrificar os princípios para defender um Estado “mesmo quando este atua como uma sociedade racista”.
50 anos de consenso agora abalado
Inicialmente indiferentes à questão da autodeterminação do povo judeu e à criação de um Estado próprio, mas sensibilizados depois pelo Holocausto e de facto envolvidos no estabelecimento de Israel, em 1948, os judeus norte-americanos acabariam por assumir a defesa incondicional do território após a vitória de Israel sobre os países árabes na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Assim tem sido desde então, até que, pela primeira vez em 50 anos, Israel deixou de merecer o consenso entre os judeus na América, constata Dov Waxman, professor de Ciência Política e Estudos Israelitas na Universidade de Northeastern.
Foi o que confirmou o recente estudo conduzido pelos sociólogos Steven M. Cohen e Jack Ukeles. Recolhidos 3000 inquéritos de judeus residentes na área da Baía de São Francisco, os resultados são expressivos. Só 37% dos jovens judeus americanos com idades entre os 18 e os 34 anos consideram “muito importante” o Estado judeu, percentagem que compara com a de 68% entre os adultos com 65 anos ou mais. Talvez ainda mais surpreendente, só 30% dos mais novos dizem simpatizar mais com Israel do que com os palestinianos, quando inquiridos sobre a sua posição relativamente ao conflito que opõe as duas partes. Na faixa entre os 50 e os 64 anos a percentagem sobe para 47%, alcançando os 56% entre os mais velhos.
Para este distanciamento tem contribuído certamente o olhar crítico dos mais novos em relação ao desempenho de Netanyahu, avaliam os autores. Mas as diferenças entre avós, pais e netos judeus não se explicam apenas pelo que Israel faz. Como alguém já escreveu, têm também que ver com aquilo que Israel é ou representa para cada geração.
Ao Expresso, Steve M. Cohen, coautor do inquérito e investigador da Hebrew Union College, sublinha a “incrível diversidade” a que é preciso atender quando se fala da comunidade judaica nos Estados Unidos, fundamentalmente dividida entre um grupo “mais ortodoxo” e outro de judeus “cujas ligações ao judaísmo são mais simbólicas”. Sentem “orgulho”, mas estão mais afastados das práticas tradicionais, explica.
O sociólogo já escreveu sobre a questão das raízes históricas para lembrar que a identidade dos judeus americanos nasceu do que chama “um sentimento de exclusão da sociedade norte-americana”, uma construção assente no coletivo mas que agora está a dar lugar a uma nova identidade definida pelos princípios da individualidade.
Distantes do Holocausto
Para Dov Waxman, por outro lado, é preciso não esquecer que grande parte dos judeus mais jovens cresceu sob influência de dois princípios “complementares” – dados pelo enquadramento político e por uma forma de judaísmo mais americanizada – e que enfatizam a não discriminação e o universalismo, por um lado; e, por outro, o compromisso social.
“São valores não conciliáveis com a ideia de um Estado que dá um tratamento preferencial aos judeus à custa dos cidadãos não-judeus, sobretudo da minoria árabe”, como acontece em Israel, diz Waxman. Há depois a “distância cronológica e emocional que separa os mais novos do Holocausto”, acrescenta, e que também ajuda a fazer perder de vista o que ainda era indiscutível para os seus pais.
Deste ponto de análise, torna-se menos surpreendente ler opiniões como a de Emma Goldberg, colunista habitual em vários jornais de referência e para quem a nova geração de judeus se identifica mais facilmente com a noção de “brancos privilegiados” do que com a dos “judeus vítimas”. Ou mesmo assistir a protestos mais radicais, como o que há cerca de um ano levou mais de mil jovens – todos judeus - a invadir o edifício do AIPAC para denunciar o papel deste Comité no apoio dos Estados Unidos a Israel. Aconteceu em plena abertura do congresso anual da organização, diante dos mais reputadas individualidades da política e economia norte-americana, e a ação foi organizada pelo movimento “If Not Now”, sob o muito eloquente slogan “os judeus não serão livres enquanto os palestinianos não o forem também”.
Há outros movimentos abertamente mais hostis e associações em conflito assumido com Israel, apesar de fundadas por judeus. Steve M. Cohen afirma que representam apenas “uma pequena parte do sentimento dos judeus americanos”. Ou seja, “estão muito nas notícias mas não traduzem a forma como a maioria dos judeus se posiciona”. “Mesmo entre os que são críticos, nem todos o fazem ativamente”, conclui.
Nakba
Mas há quem se defina pelo ativismo. Em vésperas da efeméride – os 70 anos de Israel, assinalados a 14 de maio – o Jewish Voice for Peace (voz judaica para a paz), organização que se diz inspirada “pela tradição judaica de trabalhar em conjunto para a paz, justiça social, igualdade e direitos humanos”, propõe assinalar nos Estados Unidos, com várias ações de consciencialização, os 70 anos da Nakba, palavra árabe para ‘catástrofe’ e que se refere ao deslocamento forçado dos palestinianos, iniciado com o estabelecimento do Estado de Israel.
Fundada em 1996 como um grupo de paz entre Israel e Palestina, a associação alargou a sua atividade em 2002 para apoiar e liderar campanhas que visam mudar a política dos EUA em relação à questão israelita. Diz “representar uma fatia cada vez maior de judeus americanos”, com “200 mil apoiantes inscritos na lista de email e 10 mil doadores particulares”. A organização também afirma subscrever “orgulhosamente” os apelos do movimento BDS - “até que Israel cumpra as leis internacionais” -, recusando considerar antissemitas os desafios para o boicote lançados pela sociedade civil palestiniana.
Pode ser mais do que uma aragem. Pelo menos nos cenários formais onde têm a palavra os judeus da chamada velha guarda, há ventos de mudança que não estão a ser ignorados. Num artigo de opinião publicado em março no “The New York Times”, Ronald S. Lauder, herdeiro do império cosmético Estée Lauder e próximo do presidente Trump, adotou uma rara posição crítica, afirmando que as políticas do governo israelita ameaçam o caráter democrático do Estado e mesmo a sua existência. Já em maio, no dia 1, o também presidente do Congresso Mundial Judeu discursou na 7ª conferência anual do Jerusalem Post, deixando um apelo a Israel para que fortaleça os seus “vínculos com a próxima geração da diáspora judaica”.
“Precisamos de nos lembrar que somos um povo. Do mais ortodoxo ao mais secular, do mais liberal ao mais conservador, somos irmãos e irmãs unidos por um objetivo comum: a sobrevivência e a prosperidade de Israel e do povo judeu”, disse Ronald Lauder, para em seguida reforçar que essa “próxima geração da diáspora judaica precisa de entender que precisa de Israel”: “Vamos fazer tudo o que for necessário para educá-los, para ajudá-los a entender a grandeza de Israel e a grandeza do judaísmo. Para que eles sintam o mesmo orgulho que nós sentimos”.
Este é talvez o desafio mais premente a assinalar o aniversário de 14 de maio. Porque a festa dos 70 anos de Israel tem algo de semelhante ao apagar das velas de um tio-avô que mora longe. Há muitos familiares empenhados em celebrar, outros que aceitam ir à festa por cortesia e algum respeito e parentes que preferem um jantar com os amigos em vez de ir cantar os parabéns apenas por obrigação. Alguns nem gostarão do tio. Muitos anos de vida? O tempo dirá.