Inovação

Como o serviço militar ajuda ao “milagre tecnológico”

Uma das criações tecnológicas mais populares saídas de Israel são os mapas da Waze, aplicação GPS que se tornou fenómeno em todo o mundo

Uma das criações tecnológicas mais populares saídas de Israel são os mapas da Waze, aplicação GPS que se tornou fenómeno em todo o mundo

Tem 8,5 milhões de habitantes e apenas 70 anos de história marcada por guerras e conflitos. Mas é líder mundial em número de cientistas e engenheiros, startups per capita e em volume de investimento de capital de risco per capita. Como é que um país com um mercado doméstico menor que o português se torna um dos líderes mundiais de inovação científica e tecnológica?

Texto Maria João Bourbon

Assim que atingem a maioridade, os rapazes e raparigas israelitas cumprem uma espécie de ritual antes de entrarem para a universidade: o serviço militar obrigatório. Eles servem as Forças de Defesa Israelitas durante três anos, elas ligeiramente menos (dois anos). Mas em Israel estar ao serviço do exército não é apenas uma obrigação, é uma formação.

As Forças de Defesa Israelita (IDF, na sigla inglesa) são uma espécie de escola preparatória para a universidade e para o mundo do trabalho - ou, para os mais ousados, um bootcamp de empreendedorismo. Nesses dois ou três anos, os jovens recém-adultos aprendem a trabalhar com pessoas diferentes, criam vínculos para a vida, alargam a rede de contactos. Ganham experiência tecnológica e em gestão, aprendem a resolver problemas em situações de stress, recebem treino técnico avançado.

Mas é talvez a informalidade das Forças Armadas israelitas que é a sua maior força. Segundo notam Dan Senor e Saul Singer no livro “Startup Nation: The Story of Israel’s Economic Miracle” (“Nação Startup: A História do Milagre Económico de Israel”), o serviço militar é um dos principais motivos para o facto de o país ser um berço de empreendedorismo e de inovação com destaque a nível mundial. O motivo? Ocorre num contexto informal onde as hierarquias pesam menos que a criatividade e a inteligência. Os soldados tratam os seus superiores pelo primeiro nome e, se os veem a cometer algum erro, são incentivados a dizer-lhes. Dos superiores recebem uma orientação “mínima”, pois a expectativa é que “improvisem”, mesmo que isto os leve a “quebrar algumas regras”. Parecem detalhes, mas fazem parte de uma cultura empreendedora incentivada em Israel - a da sua apetência para o risco, sem medo do falhanço nem da crítica.

Corinna Kern / NurPhoto via Getty Images

Corinna Kern / NurPhoto via Getty Images

O recrutamento, treino e experiência dada “aos futuros engenheiros de Israel” nas Forças Armadas é apontado como uma das pedras basilares da cultura de inovação de empreendedorismo e alta tecnologia no país. “Os soldados que no IDF trabalharam intensivamente para encontrar soluções para os desafios de segurança em constante mudança foram mais tarde estudar nas universidades israelitas”, explica ao Expresso o conselheiro da Embaixada de Israel em Lisboa, Raslan Abu Rukun. “Alguns tornam-se soldados, muitos criam as suas startups e empresas no sector privado.”

A nação das startups

Com apenas 8,5 milhões de habitantes e uma história marcada por guerras e conflitos, Israel conseguiu tornar-se líder mundial em volume per capita de capital de risco disponível, tal como em número startups per capita, de engenheiros e cientistas. Em 2016, as startups do país angariaram um recorde de 4,8 mil milhões de dólares em financiamento, segundo mostram os dados partilhados com o Expresso pela Autoridade de Inovação de Israel. E todos os anos, subtraindo as que fecham às que nascem, são criadas 600 novas empresas no país.

Terceiro país do mundo com maior número de empresas no índice tecnológico NASDAQ (atrás dos Estados Unidos e da China), Israel tem a sua própria Silicon Valley, denominada Silicon Wadi, nos arredores de Tel Aviv. A capacidade de atração de investimento estrangeiro é tal que o país já acolhe cerca de 300 centros de investigação e desenvolvimento (I&D) de multinacionais como o Facebook, Google, Microsoft, IBM, Cisco, Intel, Siemens, Apple, Berkshire-Hathaway, entre muitas outras.

Mas como é que um país pequeno, sem recursos naturais e marcado por guerras e conflitos desde que foi criado há 70 anos consegue tornar-se uma referência mundial ao nível da inovação, tecnologia e ciência? O serviço militar é um dos motivos, mas não o único.

Com um mercado doméstico pequeno, a economia israelita aprendeu desde cedo a virar-se para o exterior. Depois da crise do início do milénio - afetada pela bolha tecnológica mundial e pela Segunda Intifada (que gerou desemprego, custos elevados de segurança e um declínio do turismo), o país encetou um plano de recuperação considerado por muitos milagroso. Abriu a economia a novos mercados e apostou na recuperação do sector tecnológico, criando uma cultura de exportação que permite ultrapassar as limitações do mercado doméstico: as suas startups são criadas a pensar no mercado mundial. A app para condutores Waze, a plataforma de criação e edição de sites Wix e a aplicação de mensagens de texto e voz Viber são algumas delas.

A israelita Waze foi comprada pela Google em 2013 Foto Brian Ach / Getty Images for LocationWorld 2016

A israelita Waze foi comprada pela Google em 2013 Foto Brian Ach / Getty Images for LocationWorld 2016

Muitas dedicam-se a procurar respostas para problemas globais e em áreas tão distintas como finanças, educação, saúde, agricultura, transportes e cibersegurança. É o caso da empresa de dessalinização IDE Technologies, criada para diminuir o impacto da falta de água em Israel, que já forneceu serviços aos Estados Unidos. Outras, como a Waze (comprada pela Google em 2013) ou a Mobileye (vendida à Intel em 2017) são adquiridas por multinacionais estrangeiras - uma realidade que tem vindo a ganhar expressão, com as aquisições totais de empresas israelitas a totalizarem 8,5 mil milhões de dólares em 2016.

O apoio do Governo, a formação universitária e a apetência para o risco por parte do sector privado são também motivos importantes. “Historicamente, desde a sua independência, Israel teve de encontrar soluções rápidas para diferentes desafios geopolíticos”, aponta o conselheiro Raslan Abu Rukun. “Esta necessidade levou o Governo israelita, as autoridades de segurança, a academia e o sector privado a cooperarem de forma inteligente de modo a criar o ecossistema de inovação certo.” O facto de o Ministério da Economia ter um representante da Autoridade de Inovação de Israel (cientista-chefe) a identificar e apoiar pequenas empresas com potencial internacional e de o país investir mais de 4% do PIB em I&D não podem ser desprezados.

Mas, “no final do dia, os recursos humanos são o factor mais importante”, sublinha o diplomata. É por isso que a aposta na educação é essencial. Universidades como o famoso instituto de tecnologia Technion, a Universidade Hebraica de Jerusalém ou o Instituto Weizmann são referências mundiais - e foram a ‘casa’ de vários prémios Nobel. O país tem, per capita, não só a maior percentagem mundial de engenheiros e cientistas como um dos maiores rácios de formação e publicações académicas, nota um estudo da consultora Deloitte. Para o dinamismo da ciência e tecnologia contribuiu também a vaga de imigrantes judeus russos que aí chegaram após a queda do muro de Berlim, em 1989.

O Instituto Weizmann de Ciência é uma das escolas científicas de elite em Israel Foto Michael Jacobs /Art in All of Us / Corbis via Getty Images

O Instituto Weizmann de Ciência é uma das escolas científicas de elite em Israel Foto Michael Jacobs /Art in All of Us / Corbis via Getty Images

Apesar do crescimento económico e do multiculturalismo empresarial, existem ainda desafios a ultrapassar. Entre eles a inclusão de mais pessoas na força de trabalho (como os árabes israelitas e os judeus ultraortodoxos) e a redução do nível de pobreza, que, segundo a OCDE, é o maior entre os países desenvolvidos (21%).

O mundo é o limite

A abertura de Israel ao mundo não se fica pelo sector privado. É estimulada de raiz pelo próprio Estado. Os programas de apoio à inovação não estão limitados ao mercado interno, mas incluem fundos binacionais - como programas conjuntos de I&D entre Israel e países como a China, o Canadá e os Estados Unidos.

Para já, programas destes com Portugal ainda não existem. “Tanto quanto sei, não existe cooperação para a investigação e desenvolvimento bilateral entre os dois países”, esclarece ao Expresso Uzi Bar Sadeh, gestor de programas bilaterais no ISERD - Direção-Geral de I&D em Israel para a Europa. “Mas podem ser submetidos projetos conjuntos através do programa Eureka e Horizonte 2020.”

Segundo garante a Embaixada de Israel em Lisboa, há uma enorme vontade de cooperação entre os dois países. “Nos últimos anos temos estado focados na construção de pontes entre israelitas e portugueses em várias áreas”, diz o conselheiro Raslan Abu Rukun. O memorando de entendimento para a inovação tecnológica entre Portugal e Israel é um exemplo disso, tal como os incentivos da embaixada à cooperação empresarial. “Incentivamos a ida de delegações económicas portuguesas a Israel” e “ligamos negócios numa base semanal”, especifica, dando o exemplo da competição Start-Tel Aviv, no âmbito da qual várias empresas portuguesas se deslocaram ao país para participar na conferência DLD - Tel Aviv Digital Conference.

No futuro, os laços deverão estreitar-se. E as relações entre Portugal e Israel vão concentrar-se em áreas específicas e com potencial de crescimento, pelo “interesse” e “elevada qualidade” que existe nos dois territórios: fintech (tecnologia de serviços financeiros), traveltech (tecnologia para a indústria de viagens) e cibersegurança.