Cultura

Império dos Sentados

O passado a pente fino

Reinaldo Serrano

Foto D.R.

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A Indonésia nunca foi um país fácil. As derivas ditatoriais, os episódios de repressão, o tratamento dado à questão timorense, tudo isto fez com que a nação do sudeste asiático fosse olhada com desconfiança. Assim foi vista de fora, mais dramática vivida por dentro. Dois notáveis documentários que se complementam sem reserva mostram o olhar duro da crueldade perpetrada em nome de um regime tão ou mais perverso do que aquele que pretendeu combater Oppenheimer não é um apelido tranquilo. E se o primeiro nome for Robert, a intranquilidade dá lugar ao medo. O físico norte-americano que assumiu ser a própria morte tornou-se, irónica e tragicamente, imortal na fama de ter dirigido o famigerado Projeto Manhattan que, no secretismo possível do laboratório de Los Alamos, Novo México, daria lugar à construção da primeira bomba atómica. Mas, tal como o hábito não faz o monge, também o apelido não torna as pessoas melhores ou piores; ele mais não é que a consequência final de um processo de batismo.

Foto D.R.

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Assim, Oppenheimer se chama o Joshua que aqui nos traz. Nascido aos 23 de setembro de 1974 na capital do Texas, natural de Austin, é hoje cidadão britânico a viver em Copenhaga. A sua curta obra enquanto documentarista é compensada pela grandeza do seu trabalho. Autor de várias “curtas” em matéria de documentário televisivo, foram os trabalhos de longa duração que lhe outorgaram fama, admiração e prestígio. Com duas nomeações aos Óscares na categoria de Melhor Documentário, o feito é tanto mais notável quanto o autor assinou apenas (e até ao momento)... dois documentários.

O primeiro com honras de parangona surgiu em 2012. Em "The Act of Killing" ("O Acto de Matar"), Joshua Oppenheimer invoca e denuncia as atrocidades cometidas durante os últimos tempos de Sukarno como presidente da Indonésia. Entre 1965 e 1967 estimam-se entre 500 mil e dois milhões o número de vítimas da tensão política naquele país do sudeste asiático. O que impressiona no trabalho de Oppenheimer é a despudorada recolha de testemunhos por parte dos perpetradores desta espécie de banalidade do mal.

O documentário gira fundamentalmente em torno de duas figuras: uma em que dificilmente acreditamos ter sido capaz de cometer os atos que revela, a outra bem mais de acordo com o que mostra -- um candidato político eivado de uma teia de corrupção que aparenta, que ostenta, que exibe mesmo quando não o faz. Os dois homens são, cada um à sua maneira, desconcertantes do ponto de vista moral, ausentes do ponto de vista humanitário, incongruentes no que concerne à sua inclusão naquilo a que vulgarmente se chama de condição humana. Remorso é uma palavra ausente num desfilar de horrores em que remorso seria o mínimo vocábulo a proferir quando a eles nos referimos, quando nos são narrados, quando nos são descritos. Esboçar sorrisos como se de uma memória de infância se tratasse a descrição de mil mortes por estrangulamento com cordas de piano, entre outros artefactos e métodos, seria entrar no domínio da loucura, eventualmente mais louca por não ser reconhecida enquanto tal por quem a levou a cabo. Um dos protagonistas refere, a dada altura, sobre a sua atuação na Indonésia de meados dos anos 60, que naquele tempo "era como se matássemos... com felicidade".

Daí que houvesse quem considerasse este documentário um crime moral; afinal de contas, os dois perpetradores -- que nunca enfrentaram a Justiça porque a própria nunca os procurou (ou quis procurar) -- foram convidados por Oppenheimer a reviver e a encenar alguns dos atos mais bárbaros que foram praticados em nome do que só pode ter sido perversão, ainda que sob o subterfúgio do argumentário político da época. Alguns podem achar esta dramatização do mal como uma soez exploração de eventos e um aproveitamento perverso das suas trágicas consequências mas, o modo como o realizador chegou à intimidade possível junto dos criminosos (e o modo como a utilizou) servirá mais para acentuar a perfídia da sua atuação que a catarse dos seus atos. Ainda assim, a excentricidade de algumas cenas pode causar desconforto e ultrapassar os limites de alguma razoabilidade para pessoas mais sensíveis.

O documentário teve, dois anos mais tarde, o seu complemento. "The Look of Silence" ("O Olhar do Silêncio") data de 2014 e revela a dolorosa memória de uma família que, tragicamente envolvida nos acontecimentos da Indonésia naquela de 60, confronta a família dos que vitimaram um dos seus. Tensão, muita tensão, desconforto e horror: tudo isso passa e perpassa para o espectador, atónito e revoltado com o desfiar de justificações injustificáveis. Adi, a figura central do documentário é, em si mesmo, fascinante. Irmão da vítima que não chegou a conhecer, o optometrista ambulante tenta, ele próprio, descortinar o que aconteceu na Indonésia daquele tempo, naquele tempo onde a purga ao comunismo era pretexto para comportamentos extremos. De contacto em contacto, de deslocação em deslocação, de conversa em conversa se vai desfiando o novelo das revelações e o confronto com a viúva de um dos torturadores. Uma vez mais, a narrativa deixa os acontecimentos discorrerem ao sabor dos testemunhos, aqui e ali reforçados novamente por uma linguagem alternativa pouco ou nada consensual.

Foto D.R.

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Visualmente, o olhar do realizador não esconde o contraditório de uma paisagem belíssima, tornada cenário do que mais sombrio a razão humana foi capaz de processar; como se a dignidade e presença de espírito de Adi Rukun personificassem e reforçassem a normalidade possível (a normalidade tangível) num teatro do absurdo. Prova disso, a aula ministrada a um grupo de crianças, ainda hoje confrontadas com a narrativa propagandística de uma série de eventos tragicamente indeléveis na vida Indonésia. "O passado é passado", diz-se repetidamente no documentário. Curiosamente, a relativização que a expressão pretende traduzir só reforça a poder do verbo; é por ser passado que a repressão existiu e não foi mera possibilidade. É por ser passado que continua tão presente num país onde até Deus parece ter os seus segredos.