Martim Silva

Opinião

Martim Silva

Políticos a revelar conversas a dois? Venham mais livros

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Cavaco Silva e Jorge Sampaio são duas das mais importantes figuras da política portuguesa das últimas décadas. O primeiro foi primeiro-ministro de três governos, dois deles em maioria absoluta (as primeiras conseguidas por um partido isolado), liderou o PSD durante dez anos e foi Presidente da República outros dez. O segundo liderou o PS durante três anos, foi presidente da maior autarquia do país e ocupou o Palácio de Belém durante dois mandatos.

Cavaco e Sampaio defrontaram-se nas legislativas de 1991, com uma vitória clara para o então líder do PSD. Mas o socialista conseguiu a ‘vingança’ quando em 1996 arrebatou a Presidência da República a um Cavaco que saia de dez anos em São Bento como primeiro-ministro.

Por estes dias, estão (ou vão estar) os dois em simultâneo nos escaparates das livrarias. Cavaco Silva com o primeiro volume das suas memórias da Presidência da República. Jorge Sampaio com o segundo volume da sua biografia (escrita pelo jornalista do Expresso José Pedro Castanheira), que abarca o período que vai desde o lançamento da sua ousada candidatura autárquica em Lisboa (era ao mesmo tempo líder do PS) em 1989, contra Marcelo Rebelo de Sousa, até ao final do seu segundo mandato em Belém, concluído em 2006, onde foi sucedido precisamente por Cavaco Silva.

Os dois livros (o que Cavaco já o li, o de Sampaio só o tenho há três dias, ainda nem chegou às bancas e estou em plena leitura das suas cerca de mil páginas) têm metodologias, abordagens e até motivações bem diferentes. O de Cavaco é escrito pelo próprio, surge claramente como uma forma de tentar ‘limpar’ a sua imagem (é bom não esquecer que deixou a Presidência com índices de popularidade e aceitação muito baixos) e é fortemente marcado pela forma muito agressiva e até mesmo vingativa como trata um ex-primeiro-ministro que consigo ‘coabitou’ cinco anos, José Sócrates. Além disso, esconde e omite factos e acontecimentos relevantes.

O de Sampaio não é um livro de memórias, é uma biografia feita por um jornalista, que junta aos depoimentos do biografado os seus extensos arquivos e ainda relatos com mais de uma centena de protagonistas do período em análise. Nele se vê um político que também é um homem, que assume falhas e hesitações, forças e fraquezas, nunca aparecendo, ao contrário do tom usado por Cavaco, como alguém que não erra, não tem dúvidas e que tudo o que faz, diz ou pensa é acertado.

Mas se a obra de Cavaco tem muito pelo que possa ser criticada, surpreende-me que um dos pontos em que mais tem sido zurzida seja pelo facto do antigo Presidente revelar o conteúdo de conversas tidas, nomeadamente com Sócrates, ao longo de anos, e que deveriam, de acordo com os apoiantes desta tese, ser mantidas sob reserva, não podendo ser colocadas a escrito e publicadas em livro.

Há vários exemplos. O social-democrata Pedro Duarte disse publicamente ter “muitas dúvidas” sobre se aquelas conversas deveriam ter sido reveladas. Renato Sampaio, socialista, disse que a revelação das conversas “é um precedente grave”. O comentador Daniel Oliveira acusou-o nestas páginas de quebrar uma regra de confiança institucional. Os exemplos sucedem-se.

Tenho para mim que a ideia, ainda que legítima, é um disparate. Os responsáveis políticos e as pessoas que ocupam os cargos mais elevados do nosso sistema político têm direitos mas também têm deveres. E se é inteiramente compreensível, normal e até saudável que durante o tempo em que ocupam os lugar essa reserva seja mantida, mais difícil é defender que ela se deva manter eternamente.

Os políticos têm um dever acrescido de transparência e prestação de contas perante os eleitores. E tudo o que fazem enquanto ocupam os cargos para os quais sejam eleitos pelo povo faz parte da nossa história e do nosso património comum e deve, por isso mesmo, ser conhecido. Claro que devem ser mantidas exceções, que são facilmente balizadas pela lei e pelo próprio bom senso, nomeadamente em casos particularmente sensíveis, de informações pessoais ou sigilosas reveladas em conversas a dois, ou de matérias em segredo de Estado ou que envolvam por exemplo o direito ao bom nome de terceiros.

Mas feita essa ressalva, um político fazer as suas memórias (ou alguém escrever a sua biografia) é tanto um direito dos próprios como quase uma obrigação para com o resto da população.

Não é preciso um esforço gigante de memória para percebermos quão importantes são as memórias políticas de nomes como Churchill ou dos presidente dos Estados Unidos. E a bibliografia nestes casos é abundante, sem que cause o mesmo género de indignação.

Tal como, estou inteiramente convencido, ninguém vai agora criticar Jorge Sampaio por na sua biografia revelar conversas que teve com nomes como Santana Lopes ou Durão Barroso durante o delicadíssimo e importante momento político que foi a passagem do segundo para a Comissão Europeia em 2004, deixando a liderança do PSD e do Governo ao primeiro. Alguém contesta que sabermos com detalhe o que se passou é um importantíssimo relato de um igualmente importante momento da nossa história?

Se é para criticar Cavaco, devemos fazê-lo pelo conteúdo do que diz e revela e pela forma como no seu livro omite, desvaloriza e vira ao contrário factos publicamente conhecidos (como a sua ligação ao BPN ou a Dias Loureiro, ou a forma como finge nunca ter desconfiado da espionagem de Sócrates, quando fez em 2009 uma comunicação pública em que falou disso mesmo).

A análise que fazemos não deve ser toldada por qualquer sentimento em relação ao que foi o papel e a prestação de um político num cargo. Estarmos barricados politica ou ideologicamente não é sensato. Cavaco Silva não fez dois bons mandatos em Belém. Saiu da Presidência por uma porta que jamais imaginou que aconteceria. Em boa medida por culpa sua. Mas isso não justifica que seja atacado por decidir colocar a escrito o que fez e o que não fez em Belém.

Aliás, isso é mesmo uma das poucas coisas pela qual merece nesta altura ser elogiado.